Em uma aula de redação online, a câmera do professor é a única desligada. Educado, Charlie (Brendan Fraser) diz aos alunos que em breve vai achar um tempinho para consertar o aparelho. Enquanto isso, a câmera do cineasta Darren Aronofsky abre seu enquadramento para mostrar o que Charlie quer esconder: ele é um homem com mais de 270 quilos, de cabelo ralo e manchas na pele. Em A Baleia (The Whale; Estados Unidos; 2022), em cartaz nos cinemas, Charlie vive confinado em seu sofá. Sair dali é uma tarefa hercúlea, assim como todas as outras que envolvam mobilidade: ele depende de um andador e de aparatos posicionados pela casa que lhe concedem um mínimo de independência— como se deitar ou se levantar sozinho e apanhar algo que caiu no chão. Um dia, uma adolescente entra impetuosa na casa, o observa de cima a baixo e diz: “Isso quer dizer que eu vou engordar?”. A jovem de 17 anos é Ellie (Sadie Sink, de Stranger Things, ótima), filha que Charlie não vê há oito anos. O esforço dele para reconquistar a menina é a força motriz do filme que deu a Fraser sua primeira indicação ao Oscar — e faz dele (com razão) um franco favorito ao prêmio.
Ao confiar o papel de Charlie a Fraser, estrela de Hollywood dos anos 1990 que caiu em ostracismo, A Baleia se impõe como mais um atestado da ousadia da A24, estúdio responsável pelo longa e que vem chacoalhando a mesmice de Hollywood. A produtora independente alcançou um recorde notável no Oscar deste ano, ao conquistar dezoito indicações distribuídas entre seis longas — sendo o principal deles o alucinante Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, favorito à estatueta de melhor filme. Integram o pacote o belga Close, na disputa por filme internacional, Aftersun e Passagem, em categorias de atuação, e a animação cult, inédita no Brasil, Marcel the Shell with Shoes On. O feito põe o modesto estúdio à frente de gigantes do setor, como Warner e Paramount, e na cola da ainda imbatível Disney — ela lidera com 22 indicações, mas diluídas entre suas várias marcas: Marvel, Pixar, 20th Century etc.
Sediada em Nova York e criada em 2012 por três entusiastas do cinema, John Hodges, David Fenkel, Daniel Katz, a A24 virou um selo de qualidade ao apostar em tramas criativas e muitas vezes sombrias, com talentos veteranos e novatos prontos a arriscar (leia abaixo). Assim, foi a escolha natural de Aronofsky para voltar ao cinema indie após uma incursão pelo mundo dos orçamentos estonteantes que resultou em naufrágios como Noé (2014).
Darren Aronofsky’s Films and the Fragility of Hope
Em sua melhor fase, assinando títulos como Réquiem para um Sonho e Cisne Negro, o diretor americano provou que é afeito a tramas que atropelam o público, deixando marcas indeléveis. Quando Aronofsky foi à Broadway, em 2012, assistir à peça The Whale, do dramaturgo Samuel D. Hunter, o jogo virou: quem saiu com cicatrizes profundas do teatro foi ele. Hunter cresceu no interior de Idaho, Meio-Oeste americano, e sofria de compulsão alimentar e depressão. Matriculado em um colégio religioso, incorporou mais uma ferida a seus tormentos mentais: a dor da homofobia. O adolescente pedia a Deus para não ser mais gay — repressão que o levou a um caminho de autodestruição. “Tive sorte de conhecer meu marido, que se tornou um apoio”, disse Hunter em entrevista. Refletindo sobre a experiência, ele pensou: e se ninguém tivesse me ajudado? Nascia então Charlie, que é gay e sofre com o luto da morte do namorado.
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Mantendo o clima teatral, o filme é ambientado na casa de Charlie — e os poucos personagens a seu redor são espelhos de fases da vida do dramaturgo. Além da filha, ele recebe a visita da amiga e enfermeira Liz (Hong Chau, também indicada ao Oscar) e de Thomas (Ty Simpkins), missionário que almeja salvar a alma de Charlie da perdição. As idas e vindas acontecem ao longo de uma semana, período em que o protagonista encara a possibilidade da morte por insuficiência cardíaca. Em momentos de crise, Charlie lê uma redação sobre Moby Dick, clássico da literatura de Herman Melville — que confere sutil dubiedade ao título do filme. O texto de tom quase infantil observa a baleia do livro e seu caçador com pena e ternura. É essa também a missão de Aronofsky e Fraser: Charlie é um homem adorável, sensível e bem-humorado. Ter compaixão por seu drama é fácil — mas, infelizmente, ele não tem por si mesmo. Uma comovente reflexão sobre o ser humano e suas várias camadas.
FÓRMULA DE SUCESSO
Estrela do Oscar 2023, o estúdio A24 — que fez A Baleia — renovou o cinema indie
Criatividade
Com orçamentos baixos, o estúdio aposta em tramas provocativas e com pontos de vista peculiares, como a ficção científica Ex_Machina (2014), sobre inteligência artificial
Terror pop
Com o notável A Bruxa (2015) em destaque, o terror filosófico, não raro sobre lendas folclóricas, virou o carro-chefe da empresa, que ainda lançou os ótimos Hereditário e Midsommar
Crítica social
Temas pesados assustam estúdios de Hollywood, mas não a A24: Moonlight (2016), sobre um jovem negro, pobre e gay, deu o primeiro Oscar de melhor filme à produtora
Novos talentos
Estreantes ganham realce no catálogo da empresa, caso da diretora escocesa Charlotte Wells, de Aftersun — que pôs Paul Mescal na disputa do Oscar de ator neste ano
Publicado em VEJA de 1º de março de 2023, edição nº 2830
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