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Alfabetização: a nova Provinha Brasil

O país não tem uma política da alfabetização. Estados, municípios, Faculdades e ONGs ainda hesitam em aceitar a evidência científica e suas implicações.

Por João Batista Oliveira Atualizado em 4 jun 2024, 14h35 - Publicado em 5 nov 2020, 18h09

O Ministério da Educação acaba de divulgar relatório de dois testes amostrais vinculados ao SAEB 2019, um referente ao 2º e outro ao 9º ano do ensino fundamental. O teste do 2º ano parece uma versão requentada da antiga Provinha Brasil, que também ja foi chamada de ANA – Avaliação Nacional da Alfabetização. Este post se concentra nos resultados de Língua Portuguesa do 2º ano e aborda três questões suscitadas pela divulgação dos dados. Primeiro abordamos as questões metodológicas, que limitam o alcance e utilidade do teste. Segundo, os resultados. E terceiro, as implicações

Primeiro: as questões metodológicas. O padrão-ouro para agências de avaliação como o INEP são o Pisa, o Timms e o PIRLS, no campo de testes internacionais. E o NAEP – National Assessment of Education Progress, nos Estados Unidos. O INEP encontra-se anos luz atrás desse padrão. No caso específico desta prova, falta publicidade adequada dos descritores, dos procedimentos relacionados ao desenvolvimento do teste, de indicadores cruciais como o desvio padrão e de clareza na apresentação do relatório. Tudo isso dificulta e – como veremos adiante – impossibilita análises mais seguras dos resultados apresentados.

No caso específico da alfabetização, a linguagem utilizada sugere uma forte conexão entre esse novo teste e seus antecessores – a Provinha Brasil e a ANA (Avaliação Nacional da Alfabetização), cujas deficiências conceituais e metodológicas foram sobejamente analisadas. Ademais, a utilização dos descritores da BNCC – Base Nacional Comum Curricular implica a adoção de um conceito equivocado de alfabetização e de seus componentes, bem como o fato de ignorar os avanços conceituais contidos nos documentos da Política Nacional de Alfabetização, o que revela fragmentação interna do Ministério. Tudo isso concorre para um extremo cuidado nas inferências que se possam fazer com base nos resultados divulgados.

Segundo: os resultados. Dentre os resultados apresentados, destacamos a média Brasil, ou seja, a média de todos os alunos que participaram da amostra independentemente do Estado (UF) em que residem. A média é de 750 pontos, numa escala na qual quem está acima de 825 se encontra no nível mais alto. Não sabemos o desvio-padrão. A diferença entre as médias das UFs é de aproximadamente 50 pontos. A esmagadora maioria das UFs se encontra a 25 pontos da média. Apenas uma UF (Ceará) situa-se a 15 pontos acima dela. Suponhamos que 750 pontos correspondam ao nível 5 de uma escala de 9 pontos. E suponhamos que o nível 4 corresponda às habilidades específicas do processo de alfabetização. Os dados mostram que 45,26% dos brasileiros não estariam alfabetizados ao final do 2º ano escolar. Isso varia de 30% no Ceará a mais de 60% em vários estados. No Centro Sul e Sudeste, situa-se em torno de 40%. Estando corretos os pressupostos, este dado é alarmante – e cabe perguntar: se as crianças não aprendem a ler e escrever nos dois primeiros anos da escola, o que aprenderam? O que ocorre nessas escolas? E o que acontece nos sistemas de ensino em que, no melhor caso, 30% das crianças encontram-se nesse nível?

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Terceiro: as lições. O Brasil não tem uma política da alfabetização, e a gravidade do problema certamente exigiria algo nessa direção. Possui um documento – correto, mas não passa disso. Nada inibe estados e municípios de possuírem uma política – e na verdade vários estados hoje apregoam possuir uma política de alfabetização. Quando examinamos o conteúdo do que se propõe, no entanto, torna-se patente que (a) essas políticas não constituem políticas cientificamente fundamentadas e (b) nada do que se propõe é semelhante ao que se chama e se pratica como política de alfabetização nos países desenvolvidos que lidaram com êxito com esse problema a partir da década de 90, notadamente França, Inglaterra, Austrália, Portugal e Estados Unidos. Ou seja: os documentos são tão vagos que nada se pode deles aprender. Dificilmente daí sairá algo robusto. Nem mesmo no Ceará, onde os resultados são nitidamente melhores do que no resto do país, existe algo que se possa reconhecer – no papel ou na prática – como capaz de explicar os melhores resultados.

O Brasil avançou um pouquinho nesta área – o problema já é considerado como real. O MEC produziu um documento intitulado Política Nacional de Alfabetização, um documento correto, cujo processo de elaboração seguiu vários passos corretos. E, mais recentemente, embora de forma canhestra, incluiu requisitos de preparação para alfabetização no PNLD da pré-escola. São avanços, mas é muito pouco. Estados, municípios, Faculdades de Educação e as Ongs influentes no setor ainda hesitam em aceitar a evidência científica e suas implicações. Mais uma vez esse atraso se reflete nos resultados – e possivelmente é responsável por eles.

Há cerca de 20 anos trabalho com alfabetização. Aprendi com a experiência e com mestres de outros países. Os resultados que colhemos sugerem que existem caminhos eficazes e caminhos certamente mais eficazes do que outros. Com base nesses resultados, e face ao desafio da Pandemia, demos um passo mais ousado: alfabetizar pela televisão. Claro que a TV não vai alfabetizar sozinha, mas o Programa Alfa e Beto na TV constitui mais uma tentativa de colocar à disposição das redes públicas soluções cientificamente embasadas e empiricamente bem-sucedidas. Existem caminhos.

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