O ano é 1985 e o Brasil acaba de passar por duas décadas de ditadura. Qualquer sinal de que a democracia voltará é motivo de esperança e, finalmente, uma eleição é anunciada. Não é a eleição direta que pedia o movimento, mas, ainda assim, é uma possibilidade de um futuro menos repressor. O povo apoia um candidato, Tancredo Neves, e ele vence. Mas na véspera da posse é internado. E 38 dias depois, morre.
O misterioso episódio da história brasileira move o filme O Paciente – O Caso Tancredo Neves, dirigido por Sérgio Rezende e escrito por Gustavo Lipsztein com base no livro homônimo de Luís Mir. Até o lançamento do livro, em 2010, pouco se sabia sobre os fatos envolvendo a doença e a morte do presidente, o que motivou as mais diversas teorias conspiratórias de que Tancredo, na verdade, teria sido assassinado. A resposta, após uma extensa pesquisa, é que o político na verdade foi mais uma vítima do precário sistema de saúde brasileiro aliado a uma série de erros médicos, frutos de desorganização, vaidade e pressa.
Historiador e pesquisador médico, Mir levou 25 anos para conseguir acesso aos prontuários do “paciente-presidente”, até então guardados a sete chaves no Hospital de Base em Brasília, e reuniu um verdadeiro dossiê para entender o que se passou desde a primeira internação até o óbito. Agora, o período é reconstituído nos cinemas com fidelidade quase absoluta: “Este é um filme documental, não é ficção”, avalia o autor. Será? Descubra quanto dos eventos mostrados no longa aconteceram de verdade.
Barbeiro assassino
Logo na cena inicial, o protagonista vivido por Othon Bastos narra um caso inusitado para a família: certo dia, na cidade de Andrelândia, ele resolvera se barbear num salão local. Enquanto aguardava, cheio de espuma no rosto, o barbeiro lhe pergunta se ele se lembrava de um assassinato ocorrido anos antes e julgado por ele, então promotor de Justiça. Por quê? Ora, porque ele tinha sido o assassino! Curiosamente, depois de dizer isso e de assustar seu cliente até a espinha, o barbeiro elogia o discurso “muito bonito” feito pelo promotor no seu julgamento e continua seu trabalho, tranquilamente.
A cena pode parecer inventada, mas foi retirada da biografia de Tancredo O Príncipe Civil, publicada por Plínio Fraga em 2017. O diretor Sérgio Rezende conta que a cidade de Andrelândia é a mesma em que seu pai nasceu e muitos colegas pensaram ser uma homenagem. “Mas era apenas uma coincidência”, diverte-se. “A história está toda no livro, exatamente como contamos.”
Um paciente teimoso
No filme, Tancredo Neves é acometido por uma forte dor abdominal na véspera da cerimônia de posse, mas se recusa a ser operado e mostra uma enorme teimosia diante do que parece, ao público, uma situação de emergência. Isso tudo, é claro, ajuda o filme a ganhar um clima de tensão, mas, segundo Mir, a gravidade não existia e, provavelmente, a dor não era tão intensa assim.
“Isso foi algo que o Sérgio [Rezende] conversou comigo e, no fim, ele me convenceu de que era preciso fazer o sofrimento parecer maior para embalar o filme”, relembra o autor. “Mas não havia um quadro de abdômen agudo. O que Tancredo sentia era cansaço, apenas”, explica. Portanto, mais do que teimosia, é provável que a recusa do paciente tenha sido um sinal de prudência.
Medo de perder o cargo para “o cavalo de Figueiredo”
Numa cena, Tancredo acorda num susto e diz ter sonhado que o presidente da época, João Figueiredo, “passava a faixa para o seu cavalo”. A frase é ficcional, inspirada em piadas que circulavam na época, mas o sentimento é real – ou, pelo menos, parte dele. O protagonista demonstra receio de que a democracia desmorone na sua ausência e que os militares retomem o poder, o que era uma possibilidade.
Contudo, como esclarece o sociólogo e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) Rodrigo Estramanho de Almeida, Tancredo não era um opositor tão ferrenho do regime quanto a cena faz parecer, mas sim algo mais próximo de um “conciliador” entre a antiga e a nova política. “Tancredo foi escolhido por ser uma ‘via segura’ para que o regime da época se colocasse no jogo democrático. Ele não representava uma revolução, tampouco uma ameaça, mas era uma figura ambígua que conciliava valores antigos e novos”, explica o professor. Para ele, essa “tendência à conciliação” sempre foi e continua sendo um traço da política brasileira, que prefere fazer mudanças conservadoras a se arriscar.
Vale lembrar que Sarney, que acabou assumindo a Presidência no lugar de Tancredo, era um dissidente do regime militar que mudou de lado para se opor à candidatura de Paulo Maluf, e é por isso que o então presidente temia que os militares não o reconhecessem.
Trapalhadas médicas
O que mais chama atenção no filme é a quantidade de erros de diagnóstico, procedimentos e comunicação cometidos pela equipe médica desde o início. Entretanto, por mais absurdos que pareçam, Mir garante que todos os equívocos mostrados ali são reais e estão documentados no prontuário – inclusive aquele em que o paciente, acordado, testemunha a confusão dos médicos sobre qual sala seria usada para a operação (parte da equipe tinha preparado uma sala na UTI e a outra parte levou o presidente ao pronto-socorro).
Diversos outros equívocos ocorreram tal como são mostrados no filme. O diagnóstico inicial feito pelo clínico, por exemplo, foi mesmo de apendicite, suspeita que só foi eliminada quando o paciente foi aberto e foi encontrado um pequeno tumor. Porém, até esse foi mal diagnosticado (dessa vez por um cirurgião), sendo confundido com um divertículo de Meckel e retirado como tal, com uma técnica arriscada. Os problemas desse procedimento acabaram provocando uma hemorragia que continuou até o último dia. Outro problema foi uma extubação apressada (a ventilação do paciente foi retirada antes da hora) feita na primeira cirurgia. Isso acabou gerando uma inundação dos pulmões, que jamais se recuperaram.
Mais tarde, Tancredo ainda seria submetido a outras intervenções fracassadas, algumas desnecessárias (como a segunda, feita para curar uma obstrução intestinal que nunca existiu) e outras, realizadas apenas para corrigir os erros das anteriores. Diante de tudo isso, Mir não esconde a indignação e lamenta: “Bastava que tivessem tratado da infecção com medicamentos e, após a posse, sem pressa, poderiam ter feito uma única cirurgia eletiva com segurança”.
Hospital precário
Além dos erros médicos, Tancredo foi vítima de um hospital desorganizado e com estrutura precária. Como o filme mostra, havia falta de materiais essenciais, os corredores estavam lotados e um exame de cintilografia precisou ser realizado em São Paulo por falta de plantonista para abrir uma sala no hospital de Brasília.
Briga de egos
Outro elemento que ajudou a selar o destino do presidente foi a disputa de egos entre os médicos de Brasília (liderados por Pinheiro Rocha) e Henrique Walter Pinotti, de São Paulo. Segundo o escritor, Pinotti teria sido a primeira opção da família, que estava pronta para levar o parente à capital paulista na véspera da posse, mas foi impedida pela equipe local, que alegou que Tancredo não aguentaria a viagem. Para ele, a atitude dos médicos de Brasília foi vaidosa, pois eles não queriam perder a chance de tratar um paciente tão célebre, mesmo não tendo condições de fazê-lo. “Se não tivessem inventado essa urgência, Tancredo poderia ter completado o mandato e vivido muitos anos”, afirma Mir.
Sala cheia
No filme, o presidente é operado diante de uma dúzia de senadores e deputados, que assistem ao procedimento sob aventais e máscaras. De fato, Mir estima que havia entre doze e catorze pessoas dentro da sala de cirurgia e outras quarenta no centro cirúrgico, acompanhando as notícias de perto. “Foi uma invasão”, comenta, refutando por outro lado uma segunda informação sugerida no longa: “Isso não significava, porém, um risco maior de infecção para o paciente. Era ruim para os médicos, que não tinham espaço para trabalhar, mas essa ideia de infecção externa, pela simples presença de pessoas na sala, é um mito”.
Desinformação e teorias da conspiração
Pode parecer absurdo, mas o laudo de Tancredo Neves realmente foi falsificado pelos médicos, como mostra o filme. A família estava ciente da doença (um tumor benigno, confundido inicialmente com um divertículo de Meckel), mas o laudo oficial omitiu essa informação. Para piorar, o assessor de imprensa Antônio Britto não teve acesso ao presidente por mais de dez dias após sua internação, trabalhando apenas com comunicados falsos ou vagos emitidos pelos médicos. A bagunça levou o povo a inventar suas próprias teorias, como a de que o presidente havia levado um tiro ou que já estava morto muito antes do dia 21, data que teria sido escolhida para coincidir com a morte de Tiradentes e dar ao político um aspecto messiânico.
Foto com morto-vivo?
Para acalmar o povo e “provar” que o presidente estava bem, Britto decidiu produzir uma foto no hospital, que acabou se transformando numa grande polêmica. Acontece que a fotografia foi realizada horas antes de Tancredo sofrer uma hemorragia grave e, quando isso veio à tona, explodiram boatos de que ele já estaria morto na foto, ou que os enfermeiros estariam escondendo tubos atrás do sofá. O que de fato aconteceu, segundo o pesquisador, foi exatamente o que mostra o filme: o presidente carregava apenas um recipiente de soro e nada além disso. A foto é real (e ele estava vivo). Abaixo, uma das imagens feita naquele dia, esta sem a presença de Risoleta ao lado do marido.
Conversas íntimas com Risoleta
Se toda a trama médica é fortemente baseada em documentos, arquivos e biografias, o retrato íntimo da família Neves está entre os elementos mais ficcionais do longa. “Os diálogos pessoais precisaram ser criados para o filme”, admite Rezende, referindo-se a cenas como aquela em que dona Risoleta (Esther Goes) segura o choro para mostrar força diante do marido e das filhas.
Além dos diálogos, as personalidades dos familiares não são totalmente baseadas na realidade. “Não consultamos a família, mas observamos entrevistas e outros vídeos para estudar os personagens”, conta Rezende, que explica que não houve a intenção de recriar fielmente traços físicos ou de comportamento, e que mesmo o protagonista Othon Bastos não quis “criar um clone” de Tancredo.