Bonita, jovem e rica, a estudante de direito Suzane von Richthofen tinha 18 anos quando tomou o noticiário do país como a mandante de um crime brutal: seu namorado e cunhado assassinaram a pauladas seus pais, Manfred e Marísia von Richthofen, enquanto eles dormiam. Desde então, a curiosidade sobre Suzane e os bastidores do crime instigam reportagens e livros investigativos que se propõem a analisar o caso. Na sexta-feira, 24, os filmes A Menina que Matou os Pais e O Menino que Matou Meus Pais, lançados pela plataforma Prime Video, da Amazon, chegaram para engrossar esse caldo.
Dirigidos por Mauricio Eça, com roteiro de Ilana Casoy e Raphael Montes, os longas retratam, respectivamente, as versões de Daniel (Leonardo Bittencourt) e de Suzane (Carla Diaz), ditas no julgamento de 2006, que resultou na sentença de 39 anos e seis meses para ambos. Ao cortejarem apenas as versões proferidas por ambos, os filmes entram nos bastidores das duas famílias envolvidas, mas ficam na superfície no quesito verdade — e deixam de lado situações absurdas em torno do caso. Em entrevista a VEJA, o jornalista Ullisses Campbell, autor de Suzane: Assassina e Manipuladora, ajuda a elucidar e a ampliar alguns fatos sobre o crime.
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Suzane religiosa
Com um terço na mão, Suzane presta seu depoimento em lágrimas, mostra o filme narrado por ela, interpretada por Carla Diaz. O julgamento aconteceu em 2006 e a jovem, então, havia sido presa no final de 2002, quando as investigações apontaram seu envolvimento no crime. O objeto, símbolo religioso da fé católica, remete a uma mudança pela qual ela passou no presídio: Suzane, que era luterana, migrou para o catolicismo. Os bastidores dessa conversão são bem tenebrosos. Suzane foi ameaçada por outra presa – uma mulher que fazia parte de uma seita satânica e queria matá-la para enviar sua alma ao Diabo. O imbróglio culminaria numa rebelião de 24 horas, comandada pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), que também queria a morte de Suzane. Para se livrar da perseguição, a jovem se aliou a uma carcereira, muito católica, que a iniciou na religião e lhe deu uma Bíblia e um terço, conta o livro Suzane: Assassina e Manipuladora. Hoje, a detenta afirma ser evangélica — mas antes flertou com o espiritismo, por influência de uma presidiária.
“Foi um dia normal”
Suzane choca o tribunal ao dizer que a quarta-feira, 30 de outubro de 2002, foi um dia normal: naquela noite, ela participaria do brutal assassinato de seus pais. A cena do filme está correta. De fato, foi um dia bem normal para a moça. “Ela almoçou com a mãe, levou o irmão ao inglês, seguiu a rotina. Não deu indícios do que viria”, conta Campbell. Suzane ainda foi ao shopping com Daniel escolher óculos de sol, um presente para seu aniversário que viria em poucos dias, em 3 de novembro.
Planejamento para matar
No filme que destaca o depoimento de Suzane, ela diz que o plano de matar seus pais veio do namorado. Daniel, porém, diz que ela queria há tempos a morte dos progenitores. Em determinada cena do filme, Suzane olha para um avião no céu e sugere: “seria bom se o avião com meus pais explodisse”. A fala é réplica da realidade: a jovem fez essa sugestão em um dia na piscina com o namorado, enquanto os pais viajavam. Para além do imaginário ou de quem manipulou quem, as investigações apontam que ambos planejaram o crime juntos, por dois anos. Os próprios contaram ao longo do processo as ideias para realizar os assassinatos, que iam desde provocar um incêndio no sítio da família até cortar os dutos de freio do carro da mãe. O filme também reproduz um teste feito por ambos. Daniel enrola um pedaço de concreto com um edredom e, no quarto dos Richthofen, ele atira contra o material. O intuito era notar se o barulho do tiro seria ouvido do lado de fora, onde Suzane estava e confirmou que sim.
Abusos do pai
No filme e na vida real, Daniel afirma que Suzane sofria abusos físicos do pai desde os 14 anos e que Manfred era alcoólatra. Ela disse o contrário no julgamento, afirmando que era uma família feliz antes da chegada do namorado. O disse que disse tem um fundo complexo. Suzane chegou a desistir de matar a mãe, após um momento de cumplicidade entre elas, quando Marísia descobriu que o marido a traia. Daniel, em seguida, disse então que iria se matar, já que não poderia manter o relacionamento com Suzane em paz. Ela voltou atrás, retomou os planos, mas, para convencer ambos os irmãos Cravinhos, inventou o abuso. No depoimento de Andreas, irmão de Suzane, ele desmente que o pai seria violento ou alcoólatra, e apenas confirma que, numa briga com a filha, na qual ameaçou deserdá-la caso não terminasse o namoro com Daniel, ficou fora de si e deu um tapa na cara de Suzane – cena que os dois filmes retratam. Segundo psicólogos envolvidos no caso, o tapa foi o gatilho para o crime.
Sexo e drogas
Em um recurso para tentar amenizar a pena e conquistar a simpatia do júri, ambos usaram como tática um discurso envolvendo manipulações, intensificadas pelo uso de drogas e domínio sexual. O filme narrado por Suzane diz que ela foi apresentada às drogas pelo namorado e que a primeira vez de ambos foi agressiva e sem consentimento. O longa que dá voz a Daniel diz que foi ela quem trouxe as drogas para a relação e o seduziu. Ela também teria dito ao rapaz que não era mais virgem. Sobre as drogas — eles usavam de maconha a cocaína e ecstasy —, a versão de Suzane ganhou mais peso quando seu irmão, Andreas, relatou também em seu depoimento que Daniel era quem trazia as substâncias. Já sobre a primeira noite entre o casal, só os dois sabem a verdade. O jornalista Ullisses Campbel, porém, desconfia da versão de Suzane. “Falei com muitos amigos de infância do Daniel, e todos disseram que ele era ingênuo nas questões de sexo. Se recusava a ir em clubes de sexo e perdeu a virgindade com Suzane.” Também depõe contra Suzane o fato de que Daniel passou sem dificuldade nos testes de Rorschach, avaliação psicológica que lhe deu o direito ao regime aberto — ela, porém, não conseguiu o mesmo feito e foi avaliada por psicólogos que acompanham o caso como manipuladora.
Pais tinham casos extraconjugais
Outro artificio usado por ambos os réus foi a tentativa de afetar a reputação do casal assassinado. Os filmes mostram Manfred como um homem infiel, e sugerem que Marísia teria um caso com uma amiga. Nenhum indício, porém, sugere que Marísia seria bissexual nem que teria tido um caso com uma paciente — essa amiga, em entrevista, negou essa possibilidade. Suzane e Marísia, porém, sabiam que Manfred era infiel.
A participação de última hora de Christian
Como mostra a versão narrada por Daniel, Christian não quis participar do crime e ameaçou revelar tudo ao pai. Suzane então diz que era abusada por Manfred, e Daniel avisa o irmão que vai matá-los sozinho. Em entrevista a Campbell, Christian conta que aceitou participar do crime “por amor ao irmão”, mas avisou a ele que seriam pegos, pois não eram assassinos profissionais e não saberiam como se comportar depois. Foi, de fato, o que aconteceu. Todo o dinheiro vivo que estava na casa no dia do crime (8.000 reais, 5.000 dólares e 1.000 euros) foi entregue a Christian, que, pouco tempo depois, comprou uma moto e chamou a atenção da polícia, que já desconfiava do envolvimento de pessoas próximas à família no assassinato.