Nada do que Jair Bolsonaro faz dá certo, a não ser a ideia de inocular no país o vírus da crise permanente, do medo da ruptura institucional. Uma sensação que se espalha, se entranha nas mentes e se transforma no espírito do tempo deste sofrido Brasil ocupante do primeiro lugar no macabro certame mundial do avanço de contaminações e mortes pela Covid-19.
A impressão de estarmos à beira de um colapso democrático se sobrepõe aos dados objetivos fornecidos pelos fatos, e estes nos dizem que nada do que Jair Bolsonaro faz dá certo.
É um presidente em rota da falência múltipla das condições de governar que a cada gesto se enfraquece mais e mais, não entrega as encomendas prometidas ao eleitorado em 2018. Não obstante, consegue disseminar a percepção difusa de perigo numa nação em que a realidade vem mostrando ser mais forte e resistente do que ele.
As instituições, as formais e as sociais, não o impedem de seguir no mandato, é verdade, mas lhe impõem derrotas contínuas que se traduzem numa desidratação evidente de poder. Obrigam-no a recuos constantes a ponto de lhe restarem poucos expoentes do grupo inicial de alucinados (chamá-los de ideológicos é conferir-lhes deferência) e de já ter feito 24 mexidas na composição original de 22 ministérios, muitas contra a sua vontade. Das trocas voluntárias, várias mostraram-se flagrantemente equivocadas e produziram mais problemas que soluções.
“O capitão ressentido quer subjugar o alto-comando das Armadas e inocular no país o vírus do medo da ruptura”
A cada vez que o presidente tenta marcar autoridade, cava mais descrédito e desprestígio. Ruim de cálculo político, pensa em obter benefícios, mas acaba tendo de arcar com prejuízos. Foi assim lá atrás no mau passo da demissão de Luiz Henrique Mandetta da Saúde. Repetiu o tropeço agora quando, para escapar da pecha da tutela ao ser obrigado a demitir Ernesto Araújo das Relações Exteriores, “chamou” uma reforma ministerial como espetáculo da semana final do mês de março e partiu para cima dos militares a fim de firmar posição de mando.
Se com a demissão do general Fernando Azevedo e Silva da Defesa a ideia era subjugar o alto-comando das Forças Armadas enquadrando-as aos seus desígnios, deu-se mal. Nenhum general, almirante ou brigadeiro da ativa dirá isso, mas o que Bolsonaro transmitiu às patentes superiores foi a imagem de um capitão rebelde dando vazão a ressentimentos não curados.
À notícia de que os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica pretendiam deixar seus cargos, o presidente mandou o novo ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, se antecipar e comunicar-lhes as demissões. Se pretendeu com isso posar de dono da iniciativa, de novo se deu mal porque a notícia da decisão dos três de sair já corria em toda a imprensa.
O registro foi não só o da solidariedade dos comandantes ao demitido. Ouviu o recado claro sobre a existência de barreira de contenção nas instâncias superiores do estamento militar. Além disso, seguiu-se ao gesto uma robusta manifestação de apoio à posição deles de alinhamento aos limites do papel que lhes é conferido pela Constituição.
Se a demissão coletiva de comandantes das três Forças é fato inédito, é também sem precedente desde a redemocratização o respaldo dado por representantes da sociedade civil à posição de militares. Atraíram simpatia e os que talvez quisessem manifestar antipatia (os adeptos da seita bolsonarista) ficaram atordoados aos balbucios sem saber direito o que dizer.
O fato de saírem bem na foto e de darem todos os sinais de que não atenderão aos desejos do presidente não autoriza a interpretação de que disso poderia resultar uma ruptura na relação hierárquica das Forças Armadas com o presidente. Entre os militares a disciplina e a hierarquia falam mais alto. Não irão, portanto, afrontar nem se confrontar com Jair Bolsonaro. Até porque, se quiserem manter a disciplina para “baixo” (nas patentes inferiores e na tropa, onde viceja o bolsonarismo), precisam obedecer à cadeia de comando “para cima”, na qual o presidente ocupa o posto supremo.
Portanto, o excesso de medo — não confundir com a necessária resistência vigilante —, de crises definitivas e rupturas irremediáveis é injustificado. Na cabeça das altas patentes isso não existe. Só existe na cabeça de um presidente que, à falta de atributos para o exercício da função, vive de alimentar um ambiente de tensão permanente a fim de manter o país refém da expectativa de uma guerra imaginária.
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Publicado em VEJA de 7 de abril de 2021, edição nº 2732