O último prato de Maria Antonieta
Antes de ter a cabeça decapitada na guilhotina, durante a Revolução Francesa, a rainha da França tomou colheradas de sopa galinha com vermicelli
A França comemora todos os anos, no dia 14 de julho, a tomada da Bastilha, por uma multidão enfurecida. A fortaleza medieval de Paris, transformada em prisão e depósito de armas, simbolizava o despotismo monárquico. O episódio ocorreu em 1789 e ajudou a deflagrar a Revolução Francesa, que durou dez anos e só terminou em 1799, com o golpe de estado que levou ao poder Napoleão Bonaparte.
A Revolução Francesa derrubou o Antigo Regime, o absolutismo personificado pelo rei Luís XVI; aboliu os privilégios da monarquia, da aristocracia e do clero; abriu no mundo a era dos governos democráticos; consagrou o princípio da liberdade, igualdade e fraternidade; reescreveu a história do país e convulsionou o continente europeu.
Mas sua colossal turbulência também legou à humanidade um obituário cruel. A Revolução Francesa matou cerca de 18 mil pessoas na guilhotina – o instrumento no qual uma lâmina afiada, com aproximadamente 40 quilos de peso, despencava do alto para decepar em segundos o pescoço imobilizado do condenado. As execuções aconteceram sobretudo no Período do Terror, vigente de setembro de 1793 a julho de 1794.
Há um site francês no qual se confirma que não só os protagonistas centrais do Antigo Regime tiveram a cabeça cortada. Pode-se identificar inclusive o motivo alegado para a execução, como por exemplo o fato da pessoa ter declarado “esperar a volta do Antigo Regime”, “ser considerada conspiradora”, “traidora da pátria” ou “insubmissa”.
Link do site: https://les.guillotines.free.fr/
A vítima mais clamorosa da guilhotina foi a rainha Maria Antonieta Habsburgo-Lorena, mulher de Luís XVI. Decapitada a 16 de outubro de 1793, na Praça da Concórdia, em Paris, ela enfrentou com destemor a insolência dos juízes e a morte a seguir. Subiu as escadas do cadafalso sem a ajuda de ninguém, apesar de ter as mãos amarradas por trás. Perdeu no trajeto um dos sapatos, hoje guardado no Museu de Belas Artes de Caen, na região da Normandia. Mas seguiu em frente. A lenda diz que aceitou calçar o do carrasco Charles-Henri Sanson, renomado profissional. No exercício do ofício, ele tirou a vida de quase 3.000 pessoas.
Era o quarto de uma linhagem familiar de seis “executores” oficiais. A dinastia foi iniciada por seu bisavô, ex-soldado do Exército Real Francês nomeado carrasco em 1684, Uma piada conta que, ao se aposentar, Sanson encontrou por acaso Napoleão Bonaparte. Este lhe perguntou se conseguia dormir em paz, depois de tantas execuções. Resposta atribuída ao carrasco: “Se os imperadores, os reis e os ditadores podem dormir bem, por que eu não conseguiria o mesmo?”
As últimas palavras de Maria Antonieta teriam sido: “Senhor, eu imploro seu perdão”. Portanto, dirigiu-se aos céus, não à multidão, como fizera nove meses antes seu marido, ao ser guilhotinado pelo mesmo carrasco. Sanson pegou a cabeça decepada de Maria Antonieta pelos últimos fios de cabelo – os outros foram cortados previamente e incinerados, para não virarem relíquias dos monarquistas – e a exibiu à multidão, que gritou em coro: “Viva a República! Viva a Liberdade!”. Poderiam ter cantado a Marselhesa, hino revolucionário de popularidade crescente, composto no ano anterior: “Allons enfants de la Patrie/Le jour de gloire est arrivé” (“Avante filhos da Pátria/O dia da glória chegou.”)
Horas antes da rainha ser retirada da Prisão da Conciergerie, situada no andar térreo do antigo Palácio da Cidade, e levada em carruagem ao cadafalso, uma mulher chamada Rosalie Lamorlière, empregada da família do carcereiro, preparou-lhe o último prato da vida. Era uma sopa de galinha com vermicelli, um tipo de spaghetti. Obviamente, a rainha estava abalada, porém serena. Rosalie contou mais tarde a derradeira conversa com Maria Antonieta:
– Madame, a senhora não comeu nada no jantar de ontem e quase nada durante todo o dia. O que poderia trazer-lhe esta manhã?
– Eu não preciso comer, Rosalie. Minha vida chegou ao fim.
– Por favor, Madame, coma alguma coisa. Guardei uma sopa de galinha com vermicelli. Está quente, sobre o fogão. Permita-me trazer um prato para a senhora.
– Muito bem, Rosalie, sirva-me um pouco de sopa.
Na verdade, Maria Antonieta se limitou a tomar algumas colheradas do caldo. Mal tocou nos fios da massa.
Filha de Francisco I, imperador da Áustria, Maria Antonieta era uma mulher fútil que teve uma infância mimada e não gostava de estudar. Aos 14 anos, casou com o delfim (herdeiro do trono) da França, futuro rei Luís XVI. Jamais conseguiu falar o francês corretamente. Recebeu aulas de teoria e solfejo, harpa e cravo. Frequentou o teatro e participou de salões intelectuais. Conviveu com filósofos, compositores, romancistas, teatrólogos. Mas jamais se livrou da imagem de mulher fútil.
Nunca amou Luís XVI, mas lhe deu quatro filhos. Foi infiel ao marido. Venerada inicialmente pelo povo francês, que admirava sua beleza, passou a ser odiada ao combater as reformas econômicas e políticas imprescindíveis para o país emergir da crise abissal. Os jornalistas panfletários e os mexeriqueiros afirmavam que ela reagiu aos clamores do povo faminto cunhando esta frase debochada: “Se não têm pão, que comam brioches”. Pura lenda.
A frase já tinha sido dita antes e duas vezes. Uma em 1660, pela princesa espanhola Maria Teresa, que casou com o rei francês Luís XIV; outra, em 1751, pela Madame Sofia, filha de Luís XV, ao saber que seu irmão, o delfim Luís Fernando de França, fora cercado em Paris por uma multidão que gritava “pão, pão”.
Se Maria Antonieta tomou colheradas da sopa de galinha com vemicelli, os juízes que a condenaram festejaram sua morte em um restaurante de Paris, saboreando o melhor da cozinha francesa e tomando champagne. Só faltava terem usado a taça seio, peça em porcelana fabricada pela Real Fábrica de Porcelana de Sèvres, cuja produção foi interrompida pela Revolução Francesa e ressurgiu como empresa nacional sob Napoleão Bonaparte.
A lenda – mais uma – sustenta que Maria Antonieta a mandou fazer no formato da sua mama. A taça seio, de boca larga e haste baixa, ricamente trabalhada, era de fato utilizada na corte da rainha e de Luís XVI. Mas não há certeza de que foi moldada na mama de Maria Antonieta. Caso a história não seja verdadeira, pelo menos é muito boa. “Allons enfants de la Patrie/Le jour de gloire est arrivé”.
SOPA DE GALINHA COM VERMICELLI – RENDE 6 PORÇÕES
INGREDIENTES
- 1 galinha de tamanho médio
- 6 talos de salsão com as folhas
- 1 cebola pequena em pedaços
- 1/2 xícara (chá) de cenouras em pedaços
- 1 folha de louro
- 6 ramos de salsinha
- Claras de 3 ovos para clarificar o caldo
- 200g de vermicelli (um tipo de spaghetti)
- 2 xícaras (chá) de ervilhas (ou aspargos cortados na diagonal) escaldadas em água, com uma pitada de açúcar
- Sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto
PREPARO
1. Limpe bem a galinha e corte-a em pedaços, pelas juntas.
2. Em uma panela grande, coloque a galinha, o salsão, a cebola, a cenoura, a folha de louro e os ramos de salsinha.
3. Cubra com bastante água fria e leve ao fogo baixo, até a galinha ficar bem cozida.
4. Retire a galinha e guarde-a para ser usada em outras preparações.
5. Passe o caldo por um coador e tempere com sal e pimenta.
6. Bata as claras com um garfo, até espumarem.
7. Clarifique o caldo, juntando-lhe as claras batidas e leve ao fogo baixo, até levantar fervura. Bata as claras mais um pouco, dentro do caldo, por cerca de 4 minutos.
8. As claras de ovo vão trazer para a superfície todas as impurezas do caldo, na forma de uma camada de espuma.
9. Cozinhe por 10 a 15 minutos, sem escumar.
10. Empurre a espuma para um dos lados da panela e, com uma concha, retire o caldo transparente e passe-o desta vez por um pano fino umedecido em água. Reserve o caldo destampado, para esfriar.
11. Antes de servir, leve o caldo para mais uma fervura e, então, misture os vermicelli. Deixe no fogo até a massa cozinhar.
12. Finalize, servindo a sopa com as ervilhas escaldadas.