Os imigrantes italianos que vieram do Piemonte, Lombardia e Vêneto e se instalaram em São Paulo um século atrás, não conseguiram preparar um risoto igual ao da terra natal. Faltava-lhes o ingrediente fundamental de um prato das três regiões, sobretudo da Lombardia, que pode ser considerada a terra de origem do prato, provavelmente nascido em Milão. Era o arroz com alto nível de amido, capaz de absorver homogeneamente o caldo e, ainda assim, ficar com a consistência «all’onda», ou seja, cremosa, nunca fluída como uma sopa, e “al dente”, com os grãos cozidos, mas oferecendo alguma resistência quando mordidos.
Por isso adaptaram a receita original do noroeste e nordeste da Itália. O prato não ficou igual, mas resultou apetitoso e fez sucesso. Usaram o arroz agulhinha, o mais consumido no Brasil, que apesar de absorver suficientemente o sabor dos ingredientes, não adquire consistência cremosa. Com ele surgiu o risoto à piemontesa. Foi popularíssimo em São Paulo e certas cidades do país entre as décadas de 1950 e 1990.
Nos anos 50 e 60, uma receita de risoto denominada “alla milanese”, temperada com açafrão e queijo parmesão, típica de Milão, já figurava no cardápio do elegante Ca’d’Oro, no bairro da República, um restaurante inaugurado no segundo andar de um prédio da Rua Barão de Itapetininga, em cima da Hasson, a mais requintada loja de tecidos da cidade. É bem verdade que não se tratava da fórmula ortodoxa na qual se inspirava, porque faltavam os grãos adequados.
“O segredo da cremosidade do nosso prato consiste em não lavar o arroz agulhinha, refogá-lo apenas ligeiramente na cebola e incorporar generosamente parmesão e manteiga no final do cozimento, parando de ferver a preparação e mexendo para deixar intacto o suave paladar de ambos”, ensinava o grande restaurateur e hoteleiro Fabrizio Guzzoni, que fundou o Ca’ d’ Oro. Ele nasceu na Suíça, mas era italiano da gema, filho de uma família de Bérgamo, na Lombardia. Anos depois, quem fazia um requisitado risoto com arroz agulhinha era Monika Galloni, do restaurante In Città, da Rua Oscar Freire, 1265, no bairro de Cerqueira César. “Fica perfeito”, garantia.
Agora vale a fantasia. Outro italiano ou italiana, supostamente do noroeste ou nordeste, acrescentou à receita o ingrediente que definiria o sucedâneo nacional. Isso teria acontecido na cozinha da sua casa ou no Gigetto da Rua Avanhandava, 63, no Centro de São Paulo. A segunda hipótese se inspira no parentesco dos componentes do arroz à piemontesa com dois outros pratos inventados ali – o cappelletti à romanesca e o talharim à parisiense. Ambos foram criados por sugestão de clientes do Gigetto. Por que não poderia ter acontecido o mesmo com o risoto à piemontesa?
O ingrediente que faltava era o molho bèchamel ou molho branco (farinha de trigo misturada em manteiga e diluída no leite). O creme de leite, raro na época, só foi usado depois. Muitos dos restaurantes que incorporaram a novidade tiveram a honestidade de chamá-la de arroz à piemontesa – e não de risotto, aliás palavra italiana derivada de riso (arroz), que deve estar ligada ao tipo de cozimento dos grãos dessa planta da família das gramíneas. Na Itália também existe o “risotto alla piemontese”, muito simples, feito apenas com cebola, caldo vegetal e queijo parmesão.
Inúmeros restaurantes assimilaram a inovação, às vezes com ligeiras mudanças, com ou sem cubos de presunto ou grãos de ervilha etc. Ela foi aceita de braços abertos notadamente pelas cantinas paulistanas, que Allan Vila Espejo, autor do livro “Cozinha Cantineira” (Edição Particular, São Paulo, 1996), excelente bê-á-ba dessa linha culinária, define como locais de “comida farta (de inspiração italiana) no sentido estrito de porções individuais generosas; (…); e de boa qualidade”.
O arroz à piemontesa passou a ser oferecido à clientela de endereços famosos, como a Cantina Balilla, da Rua do Gasômetro, 332, no Brás; a Cantina Montechiaro, da Rua Santo Antônio, 844, no Bixiga; a Cantina Don Ciccillo, da Praça Tomás Mórus, 185, na Água Branca; além do ítalo-paulistano Recreio Jaraguá, na Rua Chico de Paula, 316, na Freguesia do Ó; e da churrascaria e restaurante variado Cabana, na Avenida Rio Branco, 90, no bairro de Santa Efigênia, do saudoso casal Maria e Felice Ferrari, ela piemontesa, ele calabrês.
Sucesso de público, o arroz à piemontesa ia à mesa no posto de guarnição do filé mignon ou tornedo (bife da parte mais grossa do lombo bovino envolvido numa fina fatia de toucinho, habitualmente ao molho madeira), e muitas vezes acompanhado de batata frita. Não era primo piatto, ou melhor, servido depois da entrada, a exemplo do que acontece com o risoto na Itália. Mas a chegada ao Brasil dos arrozes arborio, carnaroli e vialone nano destronou a receita nacional, que hoje sobrevive em poucos restaurantes paulistanos.
Os legítimos grãos italianos tiveram sua importação liberada e agora são, inclusive, cultivados em nosso país. Credita-se a sua introdução na cozinha dos restaurantes, na década de 1990, ao restaurateur Rogério Fasano, neto de lombardos e sócio do Fasano, na época localizado na rua Haddock Lobo, 1644, no bairro de Cerqueira César. Os arrozes italianos aterrissaram literalmente em São Paulo: vieram escondidos na sua bagagem de viagem aérea.
No início, o autêntico risoto encontrou restrições até mesmo de clientes que se consideravam experts em gastronomia. Criticavam-no dizendo que os grãos eram duros. Também estranhavam a cremosidade. No Brasil, apreciava-se o arroz soltinho. Rogério Fasano precisava explicar que se tratavam de duas características importantes do prato. Quanto à cremosidade, constituía sua primeira caraterística, obtida pela contínua mistura do arroz durante o cozimento, em um movimento que vai do centro da panela para a borda, a fim de soltar o amido; a outra era o ponto al dente.
Algumas pessoas achavam uma extravagância Rogério Fasano gastar dólares em uma matéria-prima que o Brasil já produzia com excelente qualidade. Ele respondia que nosso arroz realmente é bom, mas se presta a preparações diferentes – e não ao verdadeiro risoto. Mesmo as mais teimosas acabaram se convertendo em admiradoras da novidade. Muitas aparecem até hoje no Fasano e nos restaurantes do grupo para saborear risoto.
Os cozinheiros italianos recomendam seis variedades de arroz para o prato. No Brasil, porém, as mais conhecidas são arborio, carnaroli e vialone nano. O primeiro é mais famoso. Dá origem a um risoto bastante cremoso. Conquistou a preferência do ilustre restaurateur paulistano Massimo Ferrari, por exemplo, dono do Felice e Maria Gastronomia, da Rua Helion Póvoa, 65, na Vila Olímpia – e por coincidência filho de Maria e Felice Ferrari, donos da citada Cabana. O carnaroli é favorito do chef Luciano Boseggia, autor do livro « Il Riso in Tasca » (DBA, São Paulo, 1997). Proporciona grãos mais consistentes e um risoto sofisticado. Já o vialone nano fica mais cremoso.
A Itália começou a plantar arroz em larga escala no século XIX. Descobriu que a planície do Pó – o rio que percorre uma extensão de 652 km de oeste para leste, ao longo do norte do país, até desaguar no mar Adriático, cerca de 50 km a sul de Veneza – prestava-se admiralmente ao seu cultivo. Construiu enormes canais de água para regar, um dos quais, o Cavour, de 1852, tem quase 83 quilômetros de extensão. O arroz é cultivado na Lombardia e em áreas do Piemonte (Vercelli) e do Veneto (Verona) com as quais faz fronteira. A plantação abrange cerca de 250.000 hectares.
Para explorar essa imensa plantação, formaram-se grandes grupos econômicos, que até a primeira metade do século XX contratava sem vínculo emporegatício uma população mal remunerada, dividida em dois grupos. Um era o dos « risaroli » , diaristas do arroz ; outro, o das « mondine », mulheres que arrancavam as ervas daninhas da plantação. As condições miseráveis de trabalho de ambos originaram canções populares, peças de teatro e um célebre filme do neorealismo italiano dirigido por Giuseppe de Santis, em 1949, intitulado «Riso Amaro» (Arroz Amargo).
No elenco, a belíssima atriz Silvana Mangano, no esplendor dos seus 19 anos, fazia o papel de uma « mondina », contracenando com Vittorio Gassman, que vivia um ladrão infiltrado no arrozal. Além de ser considerada a dona das pernas mais lindas do mundo e do desempenho dramático, Silvana Mangano fez o mundo saber que a Itália colhia um arroz incomparável, apropriado a certas preparações culinárias, especialmente para o risoto.
Nosso agulhinha, apesar de revelar a qualidade do rápido cozimento, de ficar soltinho e de ter sabor incomparável, estava colocado na receita errada. Na cozinha brasileira, serve admiravelmente para a canja, o baião de dois, o arroz de carreteiro, o arroz de suã, o arroz de cuxá, a galinhada e acompanha a feijoada que, sem arroz, é falha tão lamentada quanto domingo sem futebol. Mas não se adapta naturalmente ao risoto. Enquanto não chegou o concorrente estrangeiro perfeito, o agulhinha até que se deu bem na receita de ascendência italiana.
ARROZ À PIEMONTESA
RENDE 6 PORÇÕES
INGREDIENTES
.1 cebola média picada
.4 colheres (sopa) de manteiga
.2 xícaras (chá) de arroz agulhinha
.1 1/2 xícara (chá) de vinho branco seco
.6 xícaras (chá) de caldo de carne ou frango
.200 g de presunto cortado em pequenos cubos
.200g de ervilhas cozidas
.250g de champignons em fatias grossas
.250g de creme de leite
.4 colheres (sopa) de queijo parmesão ralado
PREPARO
1. Em uma panela, doure levemente a cebola em metade da manteiga.
2. Junte o arroz e misture apenas por alguns minutos.
3. Adicione o vinho branco e deixe o líquido evaporar, mexendo cuidadosamente.
4. Incorpore, aos poucos, o caldo quase em ponto de fervura, mexendo sempre e colocando mais caldo à medida que o arroz for secando.
5. Distribua o presunto, as ervilhas e os champignons.
6. Sempre mexendo, acrescente o creme de leite e metade do queijo parmesão.
7. Quando o arroz estiver no ponto desejado, apague o fogo e misture as duas colheres de manteiga que sobraram.
8. Finalize polvilhando o queijo parmesão restante.
9. Mexa mais uma vez e sirva imediatamente.