Perto da estação Dostoevskaya, ao norte do anel central do ramificado metrô moscovita, fica a casa (hoje convertida em museu) onde Fiódor Dostoiévski (1821-1881) morou até os 17 anos, quando o escritor se mudou para São Petersburgo para, seguindo os desígnios do pai (e à revelia de sua vocação artística), estudar na Academia de Engenharia Militar.
Para os padrões da nobreza da época – a família Dostoiévski pertencia aos baixos estratos nobres –, a casa do escritor era bem modesta. Contígua a um hospital para tratamento de tuberculose, onde o pai médico do autor (Mikhail) trabalhava, a casa/museu nos apresenta, junto à entrada, um busto de Dostoiévski talhado em madeira. Com olhos de esfinge, o semblante entre taciturno e reflexivo e as mãos cruzadas à frente do corpo, o escritor de barba longa e desgrenhada mais parece uma sentinela a sentenciar para o visitante/leitor: “Decifra-me ou devoro-te? Não. Decifra-me enquanto te devoro”.
Na sala de estar, estão dispostos sobre um tapete puído três brinquedos do menino Dostoiévski – um cavalicoque e um possível ícone religioso, ambos de madeira, entremeados por um garboso oficial tsarista em seu uniforme militar ornado por botões, medalhas e dragonas dourados. Junto aos bonecos, espalham-se algumas gravuras que, em seu colorido vivaz, mais parecem saídas de uma fábula do dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875). [Fico imaginando o menino Dostoiévski bastante impressionado pela atmosfera densa e febril de Andersen, cujas fábulas (supostamente) infantis bem podiam prenunciar o pathos agônico do autor de Crime e Castigo (1866).]
Vidrado pelo imaginário dos primeiros anos de Dostoiévski, eu não noto que tenho companhia. Súbito, uma mão pousa em meu ombro esquerdo e me diz:
– A julgar pela forma intensa com que observa os brinquedos de Dostoiévski, deduzo que você gosta muito do autor, não?
Quando dou por mim, uma senhora de cabelos brancos como algodão doce, bochechas flácidas transpassadas por pequenas veias azuladas e xale bem preto me olha como se me conhecesse há um bom tempo. Quando lhe digo que estudo a obra de Dostoiévski há muitos anos, a senhora – “Meu nome é Sofia Filíppovna, mas pode me chamar de Sônia” – pega a minha mão direita com decisão e sentencia:
– Venha comigo!
Não lhe ofereço resistência e, sem saber por quê, não pergunto à minha guia inusitada a razão pela qual acabamos saindo da casa de Dostoiévski e começamos a andar pelo jardim em frente ao museu, em cujo centro desponta uma estátua do escritor vestido com um longo sobretudo que mais parece uma batina. Dostoiévski novamente fita o leitor/visitante com olhos de esfinge, mas, agora, sua mão esquerda parece conter um punhado de sementes que a mão direita vai aspergindo, como se o escultor houvesse coagulado o gesto do autor de Os Irmãos Karamázov (1880) no preciso momento em que Dostoiévski escolhe o seguinte versículo do Evangelho Segundo João (12:24) como epígrafe de seu último romance: “Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica só; mas, se morrer, produz muito fruto”.
Sônia faz uma reverência à estátua e continua a me puxar pela mão direita. “Vamos, já estamos chegando”. Quando suponho que, com esse xale preto a lhe cair dos ombros até a cintura, Sônia deve ser uma viúva, minha guia inusitada aponta o indicador direito algo curvado pelo reumatismo para um edifício amarelo bem alto, à frente do qual despontam colunas gregas vigorosas como sentinelas e repletas de nódoas marrons. O edifício desponta ao fim do jardim, bem ao lado do terreno da casa/museu de Dostoiévski.
– Aqui está, meu jovem: este é o Teatro do Exército. A história deste edifício poderia ter sido narrada por Dostoiévski – e é precisamente isso que eu quero lhe contar, se você prometer que vai me deixar falar sem jamais me interromper.
Até então, eu não interrompera Sônia sequer uma vez, mas os olhos imperiosos da potencial viúva se impuseram. Consenti, então, com um meneio vertical da cabeça.
– Muito bem, meu jovem: quem tem ouvidos para ouvir, que ouça! Dizia eu que este belo edifício do Teatro do Exército tem uma história que bem poderia ter sido narrada por Dostoiévski. E por quê? Ora, julgue você mesmo, rapaz, veja só: após a covarde invasão que os nazistas impuseram ao nosso país, em meados de 1941, muitos de nós sucumbimos – milhões de irmãos e irmãs soviéticos, meu jovem, milhões! Ora, mas aqueles nazistas comedores de chucrute não perdiam por esperar – ou você acha que apenas nós fomos reduzidos a prisioneiros, hem? Ora, e o nosso Stálin lá permitiria isso, rapaz? Pense bem, veja lá! Não, nós bem que apanhamos uma porção deles – e aqueles tais de Fritz, Eugen e Joseph iam aprender uma lição, ah, se iam! A 171ª Divisão de Infantaria do nosso heroico Exército Vermelho ficou responsável, no imediato pós-guerra, pela reconstrução do edifício deste belíssimo teatro que ficou seriamente avariado pelos ataques aéreos daqueles piratas de Hitler. (Sônia dá uma cuspidela para o lado com a boca bem torta ao pronunciar o nome do Führer.) E aí, meu jovem, é lei de talião, como já dizia o velho Código de Hamurabi e como até mesmo as leis de Moisés passaram a rezar: olho por olho, dente por dente. Se os alemães destruíram o nosso belo teatro, os alemães devem reerguê-lo. Vocês não gostam de trabalhar, seus chucrutes? Pois bem, trabalhem agora para aqueles que vocês ofenderam, trabalhem para Stálin, seus invasores covardes, trabalhem para nós! Com o chicote em riste, os oficiais da Infantaria e os comissários do Partido supervisionaram o trabalho dos prisioneiros alemães – pedra sobre pedra, o Teatro do Exército foi ganhando alma novamente. E era curioso discernir uma sensação ambígua na cara dos chucrutes: Fritz, Eugen e Joseph trabalhavam com diligência – a gente tem que admitir que os alemães têm muita fibra –, eles estavam orgulhosos da construção mesmo trabalhando como prisioneiros, mesmo tendo sido reduzidos a escravos, só que os chucrutes como que começaram a se perguntar, e agora, o que vai ser, o que vai acontecer quando a gente terminar isso aqui? Quando um deles ousou esboçar uma pergunta para o supervisor do Exército Vermelho que fazia as vezes de capataz, o oficial surrou o chucrute com a coronha do fuzil e gritou: “Ora, e vocês lá deram chance para nossos irmãos soviéticos saberem que destino os esperava nos campos de concentração, seus vermes?!” Depois desse dia, os chucrutes pareciam resignados – vai lá saber o que acontece a um homem quando, de alguma forma, ele tem a intuição infalível de que já não é possível fazer mais nada, meu jovem, vai lá saber! O fato é que nosso Teatro do Exército ficou formidável, rapaz – e, para você ver que nosso Exército Vermelho não era composto pura e simplesmente por justiceiros, mas por oficiais e soldados vitoriosos e dignos, os chucrutes foram convidados para assistir à primeira peça que seria encenada desde que a invasão da besta fascista ceifou a paz na União Soviética. Mas você precisava ver a surpresa na cara dos chucrutes – surpresa e agonia. Os chucrutes puderam ficar bem perto do palco, acorrentados nos bastidores, enquanto a cena do parricídio em Os Irmãos Karamázov ia sendo realizada aos olhos de ninguém mais, ninguém menos que o Guia Genial dos Povos – Stálin em pessoa esteve aqui, meu jovem! Quando a peça terminou, os chucrutes foram levados ao palco – imagine as luzes da ribalta contra as caras atônitas daqueles nazistas, meu jovem, imagine só! E eis que o próprio Stálin ordenou que uma salva de palmas clamorosa ecoasse em homenagem aos prisioneiros alemães que, a despeito da invasão covarde, haviam contribuído para a retomada da glória do Teatro do Exército. Foi então que Fritz, Eugen e Joseph (e os demais chucrutes) riram com aquela carranca ambígua das antigas máscaras gregas. Era rir, literalmente, para não chorar. E aí, meu jovem, imagine o que aqueles chucrutes sentiram, rapaz, quando Stálin subiu ao palco para dar a mão aos prisioneiros acorrentados – nem se alguém os beliscasse, aqueles chucrutes acreditariam que ainda estavam vivos, nem assim! Pois Stálin subiu até o palco, cumprimentou, um a um, aquela cambada de chucrutes e fez um pronunciamento de que eu jamais pude me esquecer: “Quando a Segunda e a Terceira Frentes Bielorrussas do nosso Exército Vermelho irromperam no leste alemão, já a uma altura da Grande Guerra Patriótica em que nos aproximávamos do covil da besta fascista, uma orgia de vingança explodiu: há quem afirme que 2.000.000 de mulheres alemãs teriam sido estupradas nos meses seguintes. Dizem, ademais, que os soldados soviéticos chegaram a violar mulheres russas recém-liberadas dos campos de concentração nazistas”. Stálin então se volta para os chucrutes, aumenta o tom de sua voz – que, ao natural, era algo rouca e baixa – e aproveita a deixa do parricídio de Os irmãos Karamázov que acabara de ser encenado: “Vocês leram Dostoiévski, não é mesmo?” Sem saber o que fazer, os chucrutes acenam que sim com as correntes. “Pois então” – prossegue Stálin –, “vejam como a alma humana é complicada! Imaginem um homem que lutou de Stalingrado a Belgrado, por milhares de quilômetros de sua própria terra devastada, por cima dos cadáveres de seus camaradas e entes mais queridos. Como é que um homem assim poderia reagir com normalidade? E, bom, venhamos e convenhamos: o que há de tão medonho em se divertir com uma mulher depois de tais horrores?” Quando os chucrutes fazem menção de esboçar risinhos cúmplices, Stálin se afasta dos prisioneiros, volta o semblante para a plateia e sentencia: “Quando a construção da formidável Catedral de São Basílio, no coração da nossa Praça Vermelha, foi concluída, Ivan, o Terrível, perfilou os arquitetos e construtores diante da igreja e, depois de lhes dar os parabéns com abraços enternecidos e efusivos, o tsar ordenou que seus algozes cortassem as mãos de todos aqueles que haviam participado da construção. Assim, a suma beleza da Catedral de São Basílio jamais poderia ser reproduzida alhures”. Assim que Stálin terminou a frase, os prisioneiros alemães – e os supervisores soviéticos da reconstrução do Teatro do Exército – tiveram suas mãos decepadas.
Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras ‘O Evangelho Segundo Talião’ (nVersos, 2013), ‘Tiro de Misericórdia’ (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a Dialética: Fetichismo da Forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro ‘Pai Contra Mãe e Outros Contos’ (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br.