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Por Flávio Ricardo Vassoler
Um olhar para o cotidiano histórico e cultural da Rússia - mas muito além do futebol
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Recordações do bunker dos mortos

Por dentro do Museu da Guerra Fria, em Moscou

Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualizado em 20 jun 2018, 07h48 - Publicado em 20 jun 2018, 07h00

Moscou, Museu da Guerra Fria, também conhecido como Bunker 42, nas imediações da estação Taganskaya do metrô (região central).

Para se chegar ao bunker propriamente dito, cuja construção se estendeu por seis anos (1950-56), é preciso descer dezesseis andares (65 metros). Como, em São Paulo, eu moro, precisamente, no 16º andar, imagino o King Kong arrancando meu prédio do solo pela raiz e o enterrando, em pé e de ponta-cabeça, até que eu abrisse a porta do meu apartamento e deparasse com o lúgubre corredor de acesso ao bunker, junto a cuja entrada postava-se um oficial do KGB para verificar, minuciosa e temerariamente, a procedência de todos e cada um dos funcionários ultrassecretos. [Caso recaísse alguma suspeita sobre determinado funcionário, o potencial espião era conduzido a uma sala ainda mais secreta (o bunker dentro do bunker, também conhecido como cemitério dos vivos) para a extração das devidas autoconfissões.]

O Bunker 42 fica sob a linha roxa e sobre a linha amarela do metrô, tendo como vizinha de profundidade a linha verde. Tal fato nos dá a dimensão de que, desde o início de sua construção, que data de 1935, os bolcheviques sob o comando de Stálin idealizaram as estações do metrô moscovita como bunkeres contra potenciais ataques aéreos dos inimigos capitalistas do Ocidente. (Quem caminha pelas veredas do bunker se vê subitamente acossado pelo barulho oceânico do metrô, como se o alarme de ataques aéreos estivesse sempre à iminência de ser disparado.)

Vale frisar que a numeração 42 refere-se a dois parâmetros: a casa da dezena diz respeito a uma escala de profundidade e blindagem que tem o seu fator máximo no número 1; a casa da unidade aponta para o número da construção do bunker na sequência das várias construções de abrigos militares em Moscou. Assim, o Bunker 42, segundo de sua espécie, está longe de ser o abrigo estratégico mais blindado, ainda que suas paredes sumamente espessas tenham sido construídas com uma sequência de 1 cm de aço,1,5 cm de concreto e múltiplas camadas de rochas maciças.

Vale frisar, ademais, que os trabalhadores que erigiram o Bunker 42 [homens que não eram escravos enviados a partir dos múltiplos campos de trabalhos forçados (os Gulags) espraiados pela União Soviética, mas operários assalariados] não tinham ideia do que estavam construindo. Eles se revezavam em turnos que iam de 2 a 3 meses; sendo assim, ninguém pôde acompanhar a construção faraônica do bunker como um todo.

Para não levantar suspeitas, os 600 funcionários que trabalhavam no bunker chegavam em trajes civis e em turnos separados. Só depois de atravessado o corredor polonês do KGB é que se podia vestir o uniforme militar. Diante do cerco e da sabotagem que as potências ocidentais impunham à URSS, a suma preocupação de Stálin em relação à espionagem contrarrevolucionária e estrangeira de modo algum pode ser tida como inteiramente paranoica. [É conhecida (e lamentável) a colocação do presidente francês Georges Clemenceau (1841-1929), à época da guerra civil russa (1918-1921) que eclodiu após a Revolução de 1917, de que era preciso estabelecer um “cordão sanitário” para isolar o bacilo ateu e comunista da civilização cristã e capitalista, colocação que os nazistas capitaneados pelo pirata Adolf Hitler e os Estados Unidos levariam às últimas consequências durante a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria.]

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Em 1949, um ano antes do início da construção do Bunker 42, os soviéticos desenvolveram sua primeira bomba atômica, a RDS-1 (sigla russa para Reaktivnyi Dvigatel’ Special’nyi, “Motor a Jato Especial”), cuja réplica cinza e bojuda – um verdadeiro baiacu radioativo – está exposta em uma das galerias do bunker. [Os EUA apelidaram a RDS-1, afetuosamente, de Joe-1, em homenagem a Ióssif (Joseph) Stálin. Na esteira da grande literatura russa, os soviéticos batizaram a RDS-1 com o nome apocalíptico de Primeiro Relâmpago.]

Réplica da RDS-1 ou Primeiro Relâmpago: a primeira bomba atômica desenvolvida pelos soviéticos em 1949 (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA)

A RDS-1 foi desenvolvida na cidade (hermeticamente) fechada de Arzamas-16, situada 450 km a leste de Moscou, na região/província (oblast) de Níjni Novgorod. Desde 1995, a Arzamas-16, equivalente soviético para a cidade estadunidense de Los Alamos, no Novo México (base para o Projeto Manhattan), é conhecida como Sarov.

O teste do baiacu radioativo foi realizado na cidade de Semei (antiga Semipalatinsk), na então República Soviética do Cazaquistão, no dia 29 de agosto de 1949 – 4 anos e 23 dias depois de Hiroshima, 4 anos e 20 dias depois de Nagasaki.
O Primeiro Relâmpago tinha um potencial explosivo de 22 megatons de TNT. Um megaton varreria Washington do mapa terrestre. 10 megatons destruiriam um país pequeno, como Cuba. Assim, o que 22 megatons fariam com um gigante continental como os Estados Unidos? Eis a pergunta que a propaganda da Guerra Fria transformou em abdução para os milhões de ouvintes de rádio/telespectadores/contribuintes estadunidenses radicalmente aterrorizados, cujos impostos eram sequestrados aos borbotões para o acirramento da corrida armamentista.

No dia 30 de outubro de 1961, os soviéticos, dessa vez a mando de Nikita Khruschov (1894-1971), testaram, em uma ilha do Oceano Ártico chamada sintomaticamente de Novaya Zemlya (Nova Terra), a RDS-220, mais conhecida como Tsar Bomba, a imperatriz de todas as bombas, com uma capacidade explosiva de 58 megatons de TNT distribuídos calma e silenciosamente ao longo das 27 toneladas do artefato nuclear. A missão de lançamento da bomba era tão perigosa, mas tão perigosa que o piloto do bombardeiro TU-95, o Major Andrei Durnovtsev (1923-1976), foi imediatamente promovido à patente de tenente-coronel do Exército Vermelho e recebeu a medalha de Herói da União Soviética por ter concordado em executar a tarefa.

O TU-95 lançou a bomba de uma altura de, aproximadamente, 10,5 km. Quando da explosão – às 11h32, horário de Moscou, e a uma altura de quase 4 km –, a bola de fogo de 8 km de diâmetro se expandiu para todos os lados com a voracidade do caos, logo lambendo o chão e alcançando a altura de voo do bombardeiro. Mesmo a uma distância de 885 km da explosão, todas as janelas do TU-95 se partiram. Tudo o que havia num raio de 100 km da explosão foi imediatamente pulverizado, como se nunca houvesse existido. Quando atingiu a altura máxima de 64 km, o cogumelo atômico ejaculado pela Tsar Bomba transformou o Monte Everest em um anão sete vezes menor. Cientistas dos EUA teriam registrado um abalo sísmico oriundo da explosão equivalente a um terremoto de magnitude 5 na escala Richter.

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Vale frisar que a Tsar Bomba foi desenvolvida com metade da capacidade nuclear inicialmente requerida por Nikita Khruschov. Se tivesse alcançado os 100 megatons originais, a amazona soviética do Apocalipse teria incinerado, a partir do Oceano Ártico, todos os cidadãos da então Alemanha Ocidental.

Da RDS-1 à RDS-220, do Primeiro ao Último Relâmpago, os soviéticos reescreveram o Gênesis e proscreveram o Apocalipse como um livro de anedotas – em face das sombras fosforescentes e vivazes que atestam que, algum dia, houve traços de vida para os seres que a Tsar Bomba aniquilou instantaneamente, o inofensivo Apocalipse passou a ser utilizado como livro de colorir. [Consta que os coroinhas da Igreja soviética entoavam versículos do Apocalipse como o cântico dos cânticos em catedrais com paredes e pilastras amorfas e líquidas – eis a versão verde fosforescente (ou seria azul-turquesa?) da Igreja da Sagrada Família.]

Se pudesse falar, a Tsar Bomba proscreveria Mefistófeles como um mal menor e sentenciaria:

– Eu sou aquela que tudo nega!

Quando pensamos que, do Bunker 42, oficiais soviéticos especularam sobre possíveis ataques e/ou retaliações nucleares aos EUA durante a crise dos mísseis, ocorrida em Cuba em outubro de 1962, vemos quão perto a humanidade chegou de, num passe de mágica, transformar em história (e imediata extinção) o versículo 2 do primeiro capítulo do mito de Gênesis: “A terra era um vazio, sem nenhum ser vivente, e estava coberta por um mar profundo. A escuridão cobria o mar”.

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Ao lado da galeria em que o Primeiro Relâmpago está exposto, os arquitetos posicionaram a sala de trabalho de ninguém mais, ninguém menos que Ióssif Stálin. Falecido em 1953, Stálin nunca chegou a reinar a partir do Bunker 42, que só se tornou operacional em 1956. Ainda assim, o simulacro de sala do tsar vermelho de cabelos bem escovados, bigode hirsuto e pele salpicada de buracos de varíola (cicatrizes que a eugenia da propaganda soviética fazia questão de eliminar a partir da hagiografia de seus múltiplos pôsteres e fotografias) se encontra devidamente equipado com uma boa biblioteca (Stálin era um leitor contumaz) e um sofá confortável para que ele pudesse tirar seu cochilo diário (de 4 a 5 horas), em meio à pesada rotina de trabalho que, ao longo das quase três décadas no poder (1927-53), incluía o “Cumpra-se” para execuções, expurgos, trabalhos forçados – e testes nucleares.

Simulacro da sala de trabalho de Stálin em meio ao Bunker 42 (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA)

É amplamente conhecido o fato de que Stálin chegou a ser um seminarista em sua Geórgia natal. São bem menos conhecidos, no entanto, o pendor estético e o altruísmo do ditador que ceifou milhões de vidas inocentes durante seu reinado.
Consta que todas e cada uma das macieiras dos jardins do Kremlin foram plantadas sob ordem de Stálin, que gostava de caminhar ao crepúsculo por entre as árvores frondosas e aromáticas.

Consta, ademais, que todos e cada um dos salários recebidos por Stálin ao longo de seu reinado eram guardados em um cofre do Kremlin. Como o líder bolchevique não precisava de dinheiro para nada, Stálin, certa vez, se lembrou de um amigo de infância, cujas agruras financeiras acabaram chegando a seus ouvidos. [Mas o que é que poderia escapar à onisciência de Ióssif Stálin?] O pai dos Gulags e da RDS-1 mandou ao velho amigo uma quantia considerável de seus ordenados.

Ora, se o aspirante a pintor Adolf Hitler tinha predileção pela Cavalgada das Valquírias (1851), de seu compatriota pangermanista Richard Wagner (1813-1883); se o líder da SS nazista Heinrich Himmler (1900-1945) recitava, em italiano, o Inferno de Dante Alighieri (1265-1321) enquanto contemplava sessões reiteradas de asfixia nas câmaras de gás sob sua administração, por que Stálin não poderia escrever poesias?

Eis, então, um poema panteísta e existencialmente tocante de autoria de Ióssif Stálin:

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“Quando a lua cheia luminosa
Cruza flutuando a abóbada celeste
E sua luz, brilhando intensamente,
Põe-se a brincar no anil do horizonte;

Quando suavemente o rouxinol
Começa no ar seu gorjeio sibilante
Quando o anseio da flauta de pã
Plana acima do pico da montanha;

Quando, contida, a fonte da montanha
Torna-se torrencial e inunda o caminho,
E a floresta, acordada pela brisa,
Começa, farfalhando, a se agitar;

Quando o homem expulso por seu inimigo
Volta a tornar-se digno de seu país oprimido
E o enfermo privado de luz
Volta a ver o sol e a lua;

Oprimido também, vejo, então, a bruma da tristeza
Se dissipar, desfazer-se e logo sumir;
E a esperança da vida boa
Faz meu coração se abrir!

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E, arrebatado por uma esperança assim,
Sinto júbilo n’alma e meu coração bater em paz;
Mas será autêntica tal esperança
Que me foi mandada nestes tempos?”

Originalmente, o poema de Stálin não tem título. Mas, em meio ao Bunker 42 e em nome dos milhões de vítimas soviéticas que, com fervor utópico, chegaram a entoar os dois últimos versos do poema – “Mas será autêntica tal esperança/ Que me foi mandada nestes tempos?” –, nós bem poderíamos intitulá-lo “Recordações do bunker dos mortos”.

Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, www.portalheraclito.com.br.

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