Quem vai ao parque VDNKh, ao norte da capital russa, depara com uma réplica da espaçonave Vostok 1, a bordo da qual o cosmonauta soviético Iuri Gagárin (1934-1968) orbitou ao redor da Terra durante 108 minutos, no dia 12 de abril de 1961.
A poucos metros do parque VDNKh, alcanço o Museu do Cosmonauta, em cuja entrada desponta uma enorme foto de Gagárin. O olhar ao longe do cosmonauta sumamente sorridente (e autoconfiante) parece acompanhar o radical esgarçamento de horizontes de sua revolução aeroespacial.
Sem conseguir deixar de fitar a foto, logo começo a imaginar as ruminações de Gagárin:
– Aquele dia estava estranhamente calmo. Céu azul sem nuvens. Eu estava rigorosamente no horário. Se eu estava nervoso? Não, estava bastante calmo. Eu havia estudado a rota com cuidado e precisão, nada podia dar errado. A central estava sempre em contato. Eu estava ciente sobre a responsabilidade que tinha em mãos, ah, se estava! Sim, senhor. Milhões de camaradas torciam pelo sucesso da minha missão. Milhões! Realizada a missão, uma guinada de 180º seria dada. Se eu tinha medo? Eu cumpria o meu dever. Um cosmonauta deve desbravar. Pronto, fui. (Testa empapada.) Eu tinha que rasgar o céu antes de atingir o espaço. Mission accomplished.
Consta que, ao atingir a altura máxima de 315 km, o primeiro homem a singrar o espaço sideral teria exclamado a seguinte frase tão singela quanto absoluta: “A Terra é azul!”
No dia 12 de abril de 1961, do cosmos negro através do qual o som não se propaga, Gagárin e a revolução aeroespacial reescrevem o Gênesis (1:2): “A terra era um vazio, sem nenhum ser vivente, e estava coberta por um mar profundo. A escuridão cobria o mar”.
Em dada ala do Museu do Cosmonauta, vejo alguns painéis da antiga União Soviética a alardear, com sumo entusiasmo (e propagandismo), a aliança (supostamente) inequívoca e inconsútil entre ciência e progresso.
Mal parece que os dias 6 de agosto de 1945 [16 anos, 3 meses e 25 dias antes de Gagárin (a.G.)] e 26 de abril de 1986 [25 anos e 14 dias depois de Gagárin (d.G.)] nos puderam mostrar que ciência e barbárie estampam o outro lado da moeda que chamamos de modernidade.
Eis o que nos diz o piloto norte-americano Paul Tibbets Jr. (1915-2007), irmão gêmeo capitalista e bivitelino do cosmonauta soviético Iuri Gagárin:
– Aquele dia estava estranhamente calmo. Céu azul sem nuvens. Eu estava rigorosamente no horário. Se eu estava nervoso? Não, estava bastante calmo. Eu havia estudado a rota com cuidado e precisão, nada podia dar errado. A central estava sempre em contato. Eu estava ciente sobre a responsabilidade que tinha em mãos, ah, se estava! Sim, senhor. Milhões de vidas dependiam do sucesso da minha missão. Milhões! Realizada a missão, eu devia dar uma guinada de 180º. Se eu tinha medo? Eu cumpria o meu dever. Um soldado deve lutar. Pronto, foi. (Testa empapada.) O Little Boy tinha que incinerar a terra antes de atingir o chão. Mission accomplished.
Assim falou Paul Warfield Tibbets Jr., comandante do Enola Gay, o bombardeiro quadrimotor B-29 que pulverizou Hiroshima com o Little Boy: a Terra é azul fosforescente!
No dia 6 de agosto de 1945, do céu atômico através do qual a temperatura se eleva a 5,5 milhões de graus centígrados, Paul Tibbets Jr. e a revolução atômica transformam o Apocalipse em um capítulo do Gênesis (1:2): “A terra era um vazio, sem nenhum ser vivente, e estava coberta por um mar profundo. A escuridão cobria o mar”.
Consta que Paul Tibbets Jr. teria batizado o bombardeiro B-29 com o nome de Enola Gay em homenagem à sua mãe, Enola Gay Tibbets.
“Genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão. Abraão gerou Isaac. Isaac gerou Jacó. Jacó gerou Judá e seus irmãos. Judá gerou, de Tamar, Farés e Zara. Farés gerou Esron. Erson gerou Arão. Arão gerou Aminadab. Aminadab gerou Naasson. Naasson gerou Salmon. Salmon gerou Booz, de Raab. Booz gerou Obed, de Rute. Obed gerou Jessé. Jessé gerou o rei Davi.
“O rei Davi gerou Salomão, daquela que fora mulher de Urias. Salomão gerou Roboão. Roboão gerou Abias. Abias gerou Asa. Asa gerou Josafá. Josafá gerou Jorão. Jorão gerou Ozias. Ozias gerou Joatão. Joatão gerou Acaz. Acaz gerou Ezequias. Ezequias gerou Manassés. Manassés gerou Amon. Amon gerou Josias. Josias gerou Jeconias e seus irmãos, no cativeiro da Babilônia.
“E, depois do cativeiro da Babilônia, Jeconias gerou Salatiel. Salatiel gerou Zorobabel. Zorobabel gerou Abiud. Abiud gerou Eliacim. Eliacim gerou Azor. Azor gerou Sadoc. Sadoc gerou Aquim. Aquim gerou Eliud. Eliud gerou Eleazar. Eleazar gerou Matã. Matã gerou Jacó. Jacó gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado Cristo” (Mateus, 1-16).
Enola Gay Tibbets gerou Paul Tibbets Jr.. Paul Tibbets, Jr., de Enola Gay, gerou o Little Boy.
No livro Vozes de Tchernóbil (Companhia das Letras, tradução de Sônia Branco), a escritora bielorrussa (de origem ucraniana) Svetlana Aleksiévitch (1948 – ) me leva a dois fragmentos de sobreviventes do acidente catastrófico que, em meados de 1986, se alastrou como uma metástase a partir da Usina Nuclear de Tchernóbil, então sob guarida da finada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Eis o desespero de duas vozes de Tchernóbil:
(i) Relato de uma mãe que deu à luz uma filha de Tchernóbil: “Os médicos/cientistas mostraram o bebê para mim. ‘Natashenka’ – foi assim que a chamei. Seu pai queria que você se chamasse Natashenka. Ela parecia saudável. Braços, pernas. Mas ela nasceu com cirrose no fígado. O fígado dela tinha 28 röntgen [unidade com que se mede a radiação]. Ela tinha doença cardíaca congênita. Durante horas, os cientistas/médicos me disseram que ela estava morta. E, então, eles repetiram: nós não vamos devolvê-la para você. Mas, ora, como assim? O que significa isso? O que vocês querem dizer com ‘nós não vamos devolvê-la para você’? Sou eu quem não vou dá-la para vocês! Vocês querem utilizá-la como cobaia para a ciência. Eu odeio a sua ciência! Eu a odeio com todas as minhas forças!”
(ii) Relato de Marat Kokhanov, ex-engenheiro chefe do Instituto de Energia Nuclear da Academia Bielorrussa de Ciências: “Por que nós ficamos em silêncio sabendo tudo o que sabíamos? Por que nós não saímos às ruas e gritamos a verdade a plenos pulmões? Nós compilávamos nossos relatórios e desenvolvíamos notas explanatórias. Mas nós ficamos em silêncio e executamos ordens sem pestanejar por causa da disciplina imposta pelo Partido. Eu era um comunista. Eu não me lembro de algum dos nossos colegas ter se recusado a trabalhar na zona do acidente nuclear. E não por eles terem medo de serem expulsos do Partido, mas porque eles tinham fé. Eles acreditavam com fervor que nós vivíamos com dignidade, eles acreditavam que, para nós, o homem era o mais alto ideal, a medida de todas as coisas. O colapso dessa fé em muitas pessoas posteriormente levou a ataques cardíacos e suicídios – a uma bala contra o coração, como ocorreu com o professor Valery Legassov [chefe da comissão de investigação sobre Tchernóbil, que, na verdade, se enforcou em 1988, no dia do aniversário de dois anos da explosão]. Tudo isso ocorreu porque, quando você perde a fé, você já não é um participante, você se torna uma carta fora do baralho, um azarão, você já não tem razão para viver. Foi assim que eu entendi o suicídio dele, como um
tipo de sinal”.
Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br.