Ao longo da década de 1870, o escritor russo Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881) compôs o Diário de um Escritor, cujos textos de cunho literário e filosófico, histórico e político contribuíram sobremaneira para disseminar a obra do autor dos famosos cinco elefantes: Crime e Castigo (1866), O Idiota (1869), Os Demônios (1872), O Adolescente (1875) e Os Irmãos Karamázov (1880).
Em homenagem ao escritor que eu venho estudando com afinco há mais de uma década e que me fez viver em ambas as fronteiras da Guerra Fria que hoje parece rediviva – vivi em Moscou durante o mestrado, entre os anos de 2008 e 2009, e fiz minha pesquisa de pós-doutorado em Chicago, em 2017 –, intitulo Diário de um Escritor na Rússia o conjunto de textos que vou escrever para o site de VEJA durante a Copa do Mundo de 2018 e que me fará viajar, como um nômade, pelas seguintes cidades:
Moscou, capital da Rússia e cidade natal de Dostoiévski;
Níjni Novgorod, cidade fechada (isto é, com severas restrições de acesso) à época da finada União Soviética (URSS), local do exílio imposto ao físico nuclear (e opositor do regime soviético) Andrei Sakharov (1921-1989);
Kazan, histórico enclave tártaro-mongol conquistado pelo tsar Ivan, o Terrível (1530-1584), em meados do século XVI;
Saransk, local de residência – o que, à época da URSS, também podia significar exílio –, de 1949 a 1969, do crítico literário Mikhail Bakhtin (1895-1975) e, desde fevereiro de 2013, do ator Gérard Depardieu (1948 – ), quando o francês decidiu abandonar seu país, por causa dos impostos (supostamente) escorchantes, para abraçar “a grande democracia russa sob Vladimir Putin”;
Samara, cidade que teria se transformado na capital soviética durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), caso Moscou tivesse caído nas garras dos invasores nazistas;
Volgogrado, antiga Stalingrado, cidade assim batizada em homenagem ao líder soviético Ióssif Stálin (1878-1953) e local onde se travou, rua a rua, prédio a prédio, ruína a ruína, a batalha histórica entre os invasores nazistas e a resistência soviética – o desenlace a favor do Exército Vermelho sepultou a invencibilidade das tropas hitleristas e, hoje sabemos, acabou sendo o marco para a reversão do curso da Segunda Guerra;
Rostov-sobre-o-Don, cidade que, durante a guerra civil (1918-1921) que se seguiu à Revolução Russa de outubro de 1917, se viu tomada por conflitos encarniçados entre os russos brancos (partidários do tsar destronado e republicanos antibolcheviques) e os russos vermelhos, capitaneados por Liev Trótski (1879-1940), fundador e organizador do Exército Vermelho;
Sotchi, tradicional balneário caucasiano à beira do Mar Negro, sede dos Jogos Olímpicos de Inverno em 2014 – a primeira vitrine político-esportiva de Vladimir Putin (1952 – ) antes da Copa do Mundo;
Kaliningrado, cidade assim batizada pelos soviéticos em 1946, em homenagem ao bolchevique Mikhail Kalinin (1875-1946), mas que, sob domínio prussiano e alemão, se chamava Königsberg, local de nascimento e morte do filósofo Immanuel Kant (1724-1804);
São Petersburgo, capital literária da Rússia (e do mundo), janela aberta para a Europa pelo tsar Pedro, o Grande (1672-1725), e, segundo o homem do subsolo, (anti-herói dostoievskiano da obra Memórias do Subsolo (1864), “a cidade mais abstrata [porque reflexiva] do mundo”. Entre 8 de setembro de 1941 e 27 de janeiro de 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, São Petersburgo – então batizada de Leningrado, em homenagem ao líder soviético Vladimir Lênin (1870-1924) – enfrentou um terrível cerco imposto pelos invasores nazistas, sítio que vitimou de fome, frio e doenças algo em torno de 700.000 civis.
Na estação de metrô Parque da Vitória, em Moscou, há um longo corredor principal, em cujas extremidades descubro que a Rússia faz questão de se lembrar das barricadas de sua história com dois painéis emblemáticos. O painel à direita retrata o príncipe e marechal de campo Mikhail Ilariónovitch Goleníschev-Kutúzov (1745-1813) secundado por seu estado-maior. A data do painel é inequívoca: 1812. Kutúzov e seu alto oficialato são os heróis da resistência à invasão pelas tropas francesas comandadas por ninguém mais que Napoleão Bonaparte (1769-1821).
O painel à esquerda leva a Praça Vermelha, o coração de Moscou, à estação Parque da Vitória. Soldados soviéticos são ovacionados, mulheres, crianças e idosos se abraçam em êxtase, flores e boinas vão ao ar, um jovem embasbacado ainda não acredita no que está acontecendo: o painel retrata o dia 9 de maio de 1945, dia em que o III Reich nazista deixou de existir, dia da vitória soviética na Grande Guerra Patriótica (1941-1945) – eis o nome pelo qual os russos chamam a Segunda Guerra.
Se a memória como cicatriz leva a Rússia a se ver como um país historicamente agredido e invadido pelas potências ocidentais, a Polônia, invadida pelos soviéticos em setembro de 1939, bem no início da Segunda Guerra, como parte do espólio acordado nas antecâmaras da assinatura do Pacto Ribbentrop-Molotov, o pacto germano-soviético de não-agressão firmado entre Adolf Hitler (1889-1945) e Stálin; a Hungria e a então Tchecoslováquia, invadidas pelos soviéticos, respectivamente, em 1956 e 1968, como forma de debelar rebeliões contra a dominação da URSS; e, mais recentemente, a Ucrânia, que assistiu, em 2014, à anexação da Crimeia pela Rússia de Vladimir Putin, após um referendo realizado ao arrepio da temporalidade determinada pelas leis internacionais – todos esses países bem podem asseverar que, além de vítima, a Rússia é uma nação deveras imperialista.
Pois é através desse país de cultura e história tão ricas quanto contraditórias que eu viajarei para compor o Diário de um Escritor na Rússia – a Rússia da grande literatura composta por Alexander Púchkin (1799-1837) e Nikolai Gógol (1809-1852), Fiódor Dostoiévski, Liev Tolstói (1828-1910) e Anton Tchékhov (1860-1904); a Rússia da dinastia Románov e de Vladimir Lênin, Liev Trótski e Ióssif Stálin; a Rússia dos poetas Anna Akhmátova (1899-1966) e Marina Tsvetaeva (1892-1941), Vladimir Maiakóvski (1893-1930) e Ossip Mandelstam (1891-1938), cujas mortes trágicas apontam para os descaminhos da utopia revertida em distopia estalinista – consta que Mandelstam certa vez teria dito que a Rússia era o único país que levava a poesia realmente a sério, já que era bem possível morrer por causa dela; a Rússia do cosmonauta soviético Iúri Gagárin (1934-1968), o primeiro homem a singrar o espaço sideral; a Rússia dos grandes literatos (e opositores do regime soviético) Boris Pasternak (1890-1960) e Alexander Soljenítsin (1918-2008), autores que receberam o Prêmio Nobel de Literatura, respectivamente, em 1958 e 1970; a Rússia do reformista soviético Mikhail Gorbatchov (1931 – ), o líder que anunciou ao mundo o colapso da URSS; a Rússia, ao fim e ao cabo, do presidente Vladimir Putin, líder casado com o poder até que a morte os separe.
Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras’ O Evangelho Segundo Talião’ (nVersos, 2013), ‘Tiro de Misericórdia’ (nVersos, 2014) e ‘Dostoiévski e a Dialética’: ‘Fetichismo da Forma, Utopia como Conteúdo’ (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios ‘Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: o Niilismo da Modernidade’ (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro ‘Pai contra Mãe e Outros Conto’s (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br.