As eleições presidenciais de 2022 foram marcadas por promessas. Foram muitas, mas a picanha e a cervejinha ficaram na memória porque ouvimos, repetidas vezes, que as mesas seriam fartas nos lares das famílias, os churrascos com amigos seriam mais animados e o cardápio do pobre (sempre o “nós contra eles”) passaria a ter carne. Mas o tempo e a inflação colocaram água nesse chope, porque os indicadores que vêm sendo anunciados nos noticiários econômicos apontam para uma disparada do preço dos alimentos, que em alguns casos já subiu mais do que o dobro da inflação.
As coisas ficarão piores e a culpa é da reforma tributária, que colocou os alimentos e o agronegócio na mira da CBS e do IBS. Alimentação é gasto essencial por natureza, seu consumo não comporta muita elasticidade porque a população precisa comer. E uma vez que os tributos sobre consumo se caracterizam pelo repasse de seu ônus nos preços, fazendo do consumidor final o seu real destinatário, a sombra das novas taxações coloca-o na desconfortável perspectiva de ter que enxugar seu cardápio e reduzir suas idas aos supermercados.
Nesse cenário, chega o momento de analisarmos os efeitos da CBS e do IBS sobre tema tão sensível. O tempo não poderia ser mais oportuno, porque a Câmara dos Deputados iniciou nesta semana os debates em torno do Projeto de Lei Complementar (PLP) n. 68/2024, que, com outros PLPs, darão regulamentação à Emenda Constitucional n. 132.
Falemos, primeiro, dos novos efeitos fiscais sobre os alimentos. Historicamente, essa categoria de produtos sempre recebeu tratamento tributário diferenciado e a razão está nos contornos dados ao IPI e ao ICMS pelo princípio da seletividade, que suaviza a carga tributária dos bens essenciais. Não há dúvidas da essencialidade de alimentos, a tal ponto que mesmo os tributos que não são seletivos, como o PIS e a Cofins, também atenuam seu peso sobre eles.
A cesta básica nunca foi definida nacionalmente, por isso cada ente federado e a União definiram-na segundo seus próprios critérios. No âmbito federal, há completa desoneração de IPI, PIS e Cofins para produtos como farinhas, leite (fluido ou em pó) pasteurizado ou industrializado, queijos, carnes bovina, suína, ovina e caprina, aves, peixes, café, açúcar e outros tantos. As regras de ICMS vão no mesmo sentido.
Tomemos como exemplo São Paulo, que isenta do imposto as vendas de carne de aves, gado suíno, caprino e outros, além de reduzir para apenas 7% a carga tributária sobre pescados, farinha de milho e trigo, alho, pão de forma, biscoitos e bolachas, pão francês ou de sal, linguiça e mortadela. As listas estaduais e nacional são grandes, mas esse breve vislumbre indica que o menor rigor fiscal recai sobre grupos de alimentos que entregam à população os nutrientes necessários à saúde de seres humanos e ao desenvolvimento de crianças e adolescentes. Não é preciso ter formação em áreas da saúde para saber que as proteínas das carnes, os carboidratos das massas, o ômega 3 dos peixes, por exemplo, contribuem fundamentalmente para o fortalecimento da saúde.
O PLP n. 68/2024 mantém a lógica e afasta os produtos da cesta básica da incidência da CBS e do IBS, mas há problemas. O texto restringe muito a cesta, apenas 15 itens foram eleitos. Não há, entre eles, nenhum que seja fonte de proteína e outros alimentos importantes, como queijos, leite, compostos lácteos e massas alimentícias também não foram contemplados pelo benefício. Na visão do governo, eles devem ser tributados com alíquota reduzida de 60%, mas, dado que as alíquotas dos novos tributos ainda não são conhecidas, as estimativas do ônus tributário devem buscar os palpites que foram dados ao longo dos últimos meses: caso as alíquotas da CBS e do IBS somem 33%, os alimentos serão tributados a 13,2%; se forem de 27,5%, a carga será de 11%; caso sejam de 26,5%, os tributos serão de 10,6%; por fim, se a CBS e o IBS forem apurados pela primeira alíquota divulgada, de 25%, então os alimentos serão taxados a 10%.
Em qualquer cenário, a população pagará mais pelos alimentos, não há dúvidas. Mas será ainda pior se considerada a reviravolta que o agronegócio vai sofrer.
Nos dias de hoje, a legislação oferece às empresas do agronegócio certos regimes diferenciados que têm o efeito de livrá-las do pagamento de tributos. No contexto, fogem da tributação tanto as circulações dos alimentos ao longo da cadeia de produção e comercialização, como também os insumos utilizados nas atividades agropecuárias, a exemplo dos adubos, fertilizantes, defensivos agrícolas, sementes, mudas, corretivo de solos, entre outros. O objetivo óbvio é baratear os alimentos mediante a eliminação de quaisquer custos tributários que possam ser alocados em seus preços.
Mas nem todos os insumos do agronegócio são desonerados e as empresas do segmento, ao adquirirem bens e serviços de transporte, serviços técnicos, manutenção de máquinas, equipamentos, instalações, ativos imobilizados, entre outros, podem ser ressarcidas em dinheiro dos tributos que gravaram essas aquisições. Ou seja, a legislação garante que recebam recursos do Erário, mesmo que não tenham tributos a pagar.
Para alguns, tantos beneplácitos podem ser excessivos, especialmente a um setor que é superavitário e dificilmente passa por crises econômicas. Mas, dado o caráter indiscutivelmente essencial dos alimentos, tudo foi arquitetado para que não haja nenhum resíduo tributário em sua cadeia, para que impostos não venham a impactar seus preços. O grande ganhador é o consumidor final.
No entanto, o PLP n. 68/2024 retira os mecanismos que garantem a não tributação da cadeia dos alimentos. Segundo as regras propostas, esterco animal (adubo) condicionadores de solos, amônia e ureia, inseticidas, fungicidas, sementes, vacinas, soros e medicamentos veterinários e razões animais, por exemplo, serão regularmente tributados pela CBS e IBS com a redução de 60%. Também aqui existem as possíveis cargas de 13,2%, 11%, 10,6% ou 10%, a depender das alíquotas que vierem a ser fixadas à CBS e ao IBS.
A incidência de tributos sobre os meios de produção dos alimentos potencializa, ainda mais, a pressão sobre os preços dos mesmos alimentos. Mesmo que o PLP n. 68/2024 autorize a tomada de créditos da CBS e do IBS ao longo da cadeia, para eliminar o efeito cascata na cadeia produtiva, há a possibilidade de a recuperabilidade do crédito ser impedida, dificultada ou obstada pela Administração Tributária. E a consequência direta é a inclusão do crédito não aproveitado no custo dos alimentos. É o que fará, por exemplo, um supermercado que, por vender alimentos isentos ou com alíquota reduzida, seja constrangido a anular parte dos créditos fiscais apropriados anteriormente. Os efeitos são desastrosos.
Já falamos de algumas loucuras e contrariedades. Lembremos do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que vai aos jornais para declarar a sua intenção de aquecer a economia brasileira por via da expansão do crédito e da construção, mas, por outro lado, apoia a instituição da CBS e do IBS justamente sobre spread bancário e operações imobiliárias, cuja consequência direta é o seu encarecimento. Não esqueçamos também da deturpação do Imposto Seletivo, que no mundo é utilizado como forma de modificação de condutas nocivas à saúde e ao meio ambiente, mas aqui não oferece nenhum incentivo para que a saúde e o meio ambiente sejam preservados. E agora vemos o governo avançar sobre alimentos e, sem nenhum remorso, caminha à concretização de uma realidade que a matemática explica muito bem: os novos tributos levarão ao aumento de seus preços.
A inspiração literária para o texto de hoje ficou para o final. A cervejinha será sobretaxada pelo Imposto Seletivo e a picanha receberá um encargo fiscal entre 11% e 13%. Não posso pensar em mais nada, a não ser nas pessoas que ficarão sem os animados churrascos, recitando (infelizmente, nesta situação) Carlos Drummond de Andrade “no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meu caminho, nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meu caminho”. Adivinhem quem é a pedra.