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“Um imenso escritor, mas com um comportamento canalha”

Obra inédita do controverso autor francês Louis-Ferdinand Céline, 'Guerra' é lançada no país. Tradutora, que o introduziu no Brasil, examina seu legado

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 16 set 2024, 15h57 - Publicado em 16 set 2024, 15h32

Qualquer lista com os melhores romancistas do século XX costuma ostentar o nome desse escritor que sempre carregará a sombra de um maldito – alguém que, nos dias de hoje, certamente seria cancelado, para usar o jargão das redes sociais.

De um lado, o autor que revolucionou a prosa incorporando a linguagem oral, suas gírias e expressões populares, ao mesmo tempo que eviscerou a miséria humana. Do outro, o francês que redigiu panfletos antissemitas e fugiu de sua pátria, destilando o ódio que brotara em seus meios de origem.

Este é Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Nos 130 anos de seu nascimento, a editora Companhia das Letras publica um livro até então inédito de sua lavra, Guerra, escrito há exatos 90 anos e guardado em seu baú até 2022, quando os manuscritos foram exumados e decupados para chegar às livrarias da França.

O romance conta a história de um sujeito que, após ser ferido na Primeira Guerra Mundial, é levado a um hospital próximo à zona do front, de onde destilará sua angústia, raiva e perfídia diante de uma legião de soldados acamados e de uma enfermeira com tara pelos homens mutilados e envergados pelos conflitos.

Eis um quadro aterrador da degradação humana, que Céline pinta com tintas autobiográficas e a vivência do médico que também ficou cara a cara com a doença e a pobreza. A guerra não acaba na guerra, parece que ele nos diz em meio aos leitos que exalam mau cheiro e sofrimento. “Peguei a guerra na cabeça”, crava o narrador.

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Hoje lemos Céline em português e em terra brasileira graças à jornalista e tradutora Rosa Freire D’Aguiar. Trinta anos depois de verter a obra-prima do escritor, Viagem ao Fim da Noite, a ex-correspondente de revistas em Paris nos apresenta o até então perdido Guerra, que condensa boa parte da temática desse polêmico figurão das letras francesas.

Será que a exposição dessa humanidade nua e crua, numa língua que demole fronteiras de normas e códigos sociais, é o antídoto contra a barbárie? No cortejo de novas batalhas, invasões e bombardeios – na Europa ou no Oriente Médio -, Céline dá o que falar.

E, afinal, podemos separar o homem da obra? Esse homem que, na visão do seu compatriota católico Georges Bernanos (1888-1948), tinha sido criado por Deus para escandalizar, como a tradutora aponta no seu texto que acompanha Viagem ao Fim da Noite

Com a palavra, Rosa Freire D’Aguiar.

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A tradutora, figura-chave na introdução de Céline no Brasil (Foto: Acervo pessoal/Reprodução)

Como a senhora descobriu Louis-Ferdinand Céline?

Isso aconteceu em duas etapas. Porque eu não era tradutora. Entre o fim dos anos 1970 e os 80, eu morava na França e trabalhava como jornalista, era correspondente da revista IstoÉ. Li Céline nessa época. E gostei muito! Fiquei encantada com o livro Viagem ao Fim da Noite. Com aquela coisa de um escritor que incorpora uma linguagem oral, gírias, expressões populares…

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Muitos anos depois, comecei a trabalhar no mercado editorial. Era outra fase da vida. E, um belo dia, eu sugeri ao Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, de traduzir o Viagem. Ainda não havia livros dele traduzidos no Brasil. Só depois que eu soube que tinha uma edição portuguesa. Bem, o Luiz topou, e eu até ajudei a negociar os direitos autorais com o pessoal da editora francesa Gallimard. Então comecei a traduzir o Céline.

Foi difícil a empreitada?

Na verdade, eu fiquei numa espécie de dilema. Depois que sugeri a tradução, pensei: será que, se eu traduzir tudo isso, transpuser para as minhas palavras, o resultado ficaria legal? Porque eu tinha adorado o Céline… em francês. A oralidade e a musicalidade do texto dele. Então fiquei com aquele receio: será que eu poderia destruir um autor do qual tinha gostado tanto? Mas isso durou pouco. Fui em frente, e o livro saiu em 1994, no ano do seu centenário.

O que eu notei, com esse trabalho, é que o desafio com o Céline era a própria língua. Porque, na época em que ele escreve, havia aqueles romances populares na França, vendidos até nas estações de trem. Mas a sacada do Céline foi pegar a forma oral da língua e transpor para a literatura. Às vezes, quando se fala em linguagem popular, pode-se pensar em pessoas falando errado. A linguagem dele não é assim. É francês puro, bem pensado e bonito. Então não, não foi fácil traduzir.

E a senhora continuou traduzindo o autor depois desse livro…

Então, uns dez anos depois de traduzir o Viagem, eu trabalhei no De Castelo em Castelo, um dos últimos livros que ele publicou, e o processo foi muito mais difícil. Porque ele não só está com aquela prosa mais elaborada. Ele escreve como um exilado, alguém que fugiu da França, foi para a Alemanha e depois para a Dinamarca. Alguém que estava no fim do mundo, numa cidade pequena, sem contato com os editores.

E a linguagem dele reflete isso: uma pessoa amargurada, com ódio, que produz um texto cheio de reticências, que, no fundo, parecem nos dizer que ele está gritando. E, depois dessa obra, ainda traduzi um livro pequeno e magnífico de Céline, o Dr. Semmelweis, que é baseado na tese de medicina dele, em cima de um médico húngaro.

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Ele virou um dos seus autores preferidos?

Eu sou apaixonada por Céline. Acho que realmente é um dos grandes do século XX. Para mim, os grandes, pelo menos da primeira metade do século XX, são Céline e Proust.

É inevitável falarmos do lado polêmico do escritor, um antissemita que publicou panfletos com esse teor e foi execrado posteriormente por isso. Dá para separar a vida da obra do autor?

Acredito que vida e obra têm de ser tomadas em sua totalidade. A vida é obra. Não dá para separar. Sim, ele é um imenso escritor, mas que teve um comportamento canalha. É preciso lembrar que Céline cresce num ambiente de antissemitismo, que era comum não só na França, mas também em outros países. Agora, uma coisa não impede a outra. Temos um grande escritor, com esse lado horrível do antissemitismo. De fato, ele publicou panfletos antissemitas. Eu os li, e jamais traduziria. São muito, muito pesados. Aquele tipo de conteúdo odioso.

Sabe, o professor Boris Schnaiderman chegou a escrever um artigo, depois publicado em livro, em que dizia que eu traduzi o impossível, por todo esse contexto envolvendo o Céline. Olha, eu acho que a literatura dele é traduzível, e é preciso traduzir para as pessoas conhecerem. Os panfletos, não. A Gallimard vive esse dilema: o de publicar ou não. A viúva e a família, detentoras dos direitos da obra, chegaram a dizer, e isso foi antes da pandemia, que, se tentassem publicar, eles iriam embargar a saída dos panfletos.

Enfim, é um tema que engloba inúmeras ressalvas, um assunto que não dá para brincar, e que ainda está vivo com acontecimentos como a guerra em Gaza, com manifestações na Europa… Esses panfletos não podem cair na mão de pessoas mal intencionadas. O curioso é que chegaram a dizer que Céline era nazista. Isso não é verdade: ele era um antissemita, mas chegou inclusive a fazer críticas ao nazismo.

A força de Céline está nesse trabalho revolucionário com a linguagem?

A transposição da língua oral para a língua escrita é o grande achado do Céline. Não há nada de improvisado nisso. Pelo contrário, é uma linguagem muito burilada. É totalmente diferente de um livro de linguagem popular. Não se trata de copiar os diálogos do povo na feira. Não é isso. É uma língua oral e popular, mas bastante trabalhada, dentro de um projeto literário sofisticado.

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No Guerra, por exemplo, a gente sabe que existem trechos que não puderam ser decifrados nos manuscritos. A impressão é que saía aquele primeiro jato de escrita, que depois ele ia burilando. É como se ele estivesse criando, em seus textos, uma língua nova.

Nos livros de Céline, e isso é evidente em Guerra, há uma denúncia da degradação humana, física, psíquica, moral… Seus escritos seriam uma tentativa de bolar um antídoto contra esse mundo e suas criaturas à beira da ruína? Essa seria uma linha de interpretação correta?

É corretíssima. E nos remete às origens do autor. Céline era filho de um funcionário público relativamente bem de vida, a avó tinha um armarinho numa galeria de Paris. Céline, inclusive, era o nome da avó, que ele vai utilizar em seu pseudônimo. Era um sujeito, digamos, de classe média, classe média baixa, um meio em que o antissemitismo era corrente. O Céline consegue dar um up grade na vida, estudar medicina numa universidade pública, e vai trabalhar com a saúde pública. Se ele estivesse hoje, aqui no Brasil, estaria trabalhando no SUS.

Enfim, ele trabalha no que os franceses chamam de dispensáire, um posto de saúde em lugares mais humildes. E começa a ter contato com toda a miséria humana. Depois é enviado a uma missão sanitária para a África, onde tem mais contato com doença, pobreza, morte…. É algo que ele resume bem numa frase: “La vérité de ce monde, c’est la mort”. A verdade deste mundo é a morte.

Céline ainda é marcado pela experiência da guerra. Foi mobilizado na Primeira Guerra Mundial, mas logo voltou para casa, tendo sofrido um acidente do qual se queixaria a vida toda. Dizia que tinha dores de cabeça intensas por causa disso. No Guerra, o protagonista diz: “Peguei a guerra na minha cabeça”. Então estamos diante de um autor que retrata a angústia da guerra. E, por retratar também as classes populares, chegou a ser louvado inclusive por comunistas e pessoas da esquerda à época.

E Guerra só veio a público recentemente, depois de um hiato de décadas…

Quando ele escreve Guerra, em 1934, já era um autor conhecido, famoso pelo Viagem. Só que ele não quis publicar esse livro. Então tem esse mistério, e há gente estudando os motivos na França. Pode ser que ele tenha deixado o texto de lado para retrabalhá-lo em outro momento, visto que dois anos depois publica Morte a Crédito. O fato é que o romance estava em meio a 6 mil laudas manuscritas que o escritor deixou. É um volume impressionante, e escrito com letra de médico, dizem. Há outros textos em meio a tudo isso. Ou seja, há muito o que decifrar.

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