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Sebastopol, 1854: quando um grande escritor vai à guerra

Cento e setenta anos antes dos atuais conflitos na Ucrânia, Tolstói presenciou um confronto histórico na Crimeia e nos deixou relatos tocantes

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 12 out 2024, 12h18 - Publicado em 11 out 2024, 11h01
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  • Sim, tem horas que a história se repete como tragédia. Pois veja só: mais de meio século depois da Guerra da Crimeia, o território ucraniano voltou a ser palco de invasões, cercos, batalhas, fugas e mortes.

    Se desta vez o conflito opõe a Rússia de Putin à Ucrânia de Zelensky, em meados do século XIX os atores eram outros. De um lado, o império russo, que acabara de tomar a Crimeia dos turcos otomanos; do outro, uma coalizão ocidental capitaneada pela Inglaterra e a França. E eis que chegamos ao episódio mais famoso e terrível da contenda: o cerco a Sebastopol, cidade ao sul da Ucrânia, nas margens do Mar Negro, que durou de outubro de 1854 a setembro de 1855.

    E quem esteve lá? Ninguém mais ninguém menos que um gigante das letras russas: o conde Lev Tolstói. Antes de se dedicar exclusivamente à literatura (e a outras causas), o futuro autor de Guerra e Paz, então um nobre oficial do exército imperial, percorreu o front e seus bastidores.

    Dessa experiência nasceram os Contos de Sebastopol, que ganham tradução de Lucas Simone em nova publicação pela Editora 34. Nos três relatos, veremos o heroísmo dos guerreiros e a paixão pela pátria ruírem num cenário de sofrimentos, mutilações e mortes. 

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    Contos de Sebastopol

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    Não é à toa que Tolstói se tornaria um pregador pacifista quando mais velho: quem presenciou os horrores de uma guerra (não nos livros nem nos filmes e séries de TV) e teve os sentidos tocados e abalados pelas explosões, pelas feridas e pelo odor nauseante de corpos macerados certamente repudiará solução desse gênero.

    Como explica o historiador britânico Orlando Figes no texto presente nos apêndices do volume, a Guerra da Crimeia foi o maior confronto do século XIX, com um saldo monstruoso de baixas e efeitos cataclísmicos sobre as antigas alianças e inimizades entre as potências de então. Desencadeou, com suas ondas nacionalistas, os movimentos tectônicos que resultariam, lá no início do século XX, em novas e maiores carnificinas.

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    Tolstói testemunhou e reconstruiu, em seus contos, o que foi caminhar entre trincheiras, tiroteios e hospitais de campanha. É a guerra nua e crua, que retornaria, com outros soldados e tecnologias, a esse mesmo território em 2014, quando a Rússia mobilizou-se pela anexação da Crimeia, tirando-a das mãos ucranianas.

    Dez anos depois, a alguns quilômetros dali, combates seguem vivos. Assim como os escritos de Tolstói.

    Com a palavra, o tradutor Lucas Simone.

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    O tradutor do livro, Lucas Simone, doutor em letras pela USP (Foto: Acervo pessoal/Reprodução)

    Em que medida as experiências de Tolstói na Guerra da Crimeia moldaram sua visão de mundo e sua literatura?

    É particularmente difícil dissociar a visão de mundo de Tolstói de sua literatura. Se o velho Conde havia granjeado, em seus últimos dias, já no século XX, a fama de pacifista radical, de iconoclasta destemido ou de moralista inflexível, isso se deve, em grande parte, ao que o jovem Lev Nikoláievitch presenciou durante a Guerra da Crimeia.

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    O leitor atento há de perceber, logo nas primeiras páginas dos Contos de Sebastopol, que qualquer laivo de glamorização da guerra terá sido rapidamente apagado pela brutalidade do front, indizível para a maioria dos mortais, mas matéria fértil para um escritor de tamanho talento. A guerra, ali, não possui a beleza diáfana com que a vemos frequentemente nos clássicos: é lamacenta, caótica, injusta e profundamente sem sentido. E é essa visão que Tolstói carrega ao longo de sua vida e que serve de substrato a muito do que de melhor sua pena produziu.

    Os Contos de Sebastopol conversam, em relação à abordagem temática ou ao estilo literário, com outras obras mais famosas do escritor, não?

    Sem dúvida. O paralelo mais direto é, evidentemente, com Guerra e Paz: de alguma maneira, Tolstói reaproveita e expande ali algumas imagens que o leitor pode encontrar em Sebastopol. O modo gráfico e espantosamente detalhado com que as operações de guerra são descritas, por exemplo, só poderiam emergir da mente de um homem que de fato esteve num campo de batalha, que sentiu o calor das explosões e que ouviu os projéteis passarem zunindo por cima de sua cabeça.

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    Mas há um outro tema, muito próximo ao da guerra, porém ainda mais amplo e mais profundo: a morte. Tolstói tinha certa obsessão por ela e, ao mesmo tempo, um medo quase patológico dela. Não à toa, uma de suas obras mais conhecidas é A morte de Ivan Ilitch, um dos livros mais impressionantes e mais tristemente realistas sobre o assunto. Nos Contos de Sebastopol, o jovem Tolstói já demonstra peculiar sensibilidade ao retratar toda a solidão e todo o desconcerto do ser humano ao encarar seu momento extremo.

    Quando compara o trabalho de tradução de Tolstói com o de outros autores russos, quais as peculiaridades e desafios da empreitada?

    Traduzir um autor da estatura de Tolstói é em si algo desafiador e, em grande medida, temerário: é aquilo que o professor Boris Schnaiderman chamou, com a delicadeza que lhe era peculiar, de um “ato desmedido”. Some-se a isso certa idiossincrasia do velho Conde, que decerto provoca reiteradas dores de cabeças em seus editores e tradutores contemporâneos: ele tinha frequentes “comichões” ao se deparar com a chance de revisar e alterar suas obras, o que fazia de maneira quase compulsiva. O resultado é uma profusão (e muitas vezes sobreposição) de variantes textuais e formulações alternativas, e nem sempre é simples escolher a “melhor” (ou mais apropriada) delas.

    Na comparação com outros gigantes da literatura russa, pode-se dizer que Tolstói compartilhava com boa parte deles a inclinação a produzir obras volumosas. No caso de Lev Nikoláievitch, essa amplidão proverbialmente russa é também uma amplidão de temas, ambientes sociais, falares e formas de expressão. Encontramos nele passagens líricas e filosóficas, melancólicas e reflexivas, mas também assustadoramente secas e brutais.

    A representação da fala é mais um elemento difícil de ser recriado na tradução: o Conde coloca face a face o aristocrata que se formou cadete no conforto da capital imperial e o praça oriundo das profundezas da Rússia tsarista. Na maioria das vezes, é impossível reproduzir em português, com a elegância do autor essas infinitas nuances do falar. Mas, ao tradutor, resta ao menos tentar, pois é aí que jaz a verdadeira imensidão de Lev Tolstói.

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