Sim, tem horas que a história se repete como tragédia. Pois veja só: mais de meio século depois da Guerra da Crimeia, o território ucraniano voltou a ser palco de invasões, cercos, batalhas, fugas e mortes.
Se desta vez o conflito opõe a Rússia de Putin à Ucrânia de Zelensky, em meados do século XIX os atores eram outros. De um lado, o império russo, que acabara de tomar a Crimeia dos turcos otomanos; do outro, uma coalizão ocidental capitaneada pela Inglaterra e a França. E eis que chegamos ao episódio mais famoso e terrível da contenda: o cerco a Sebastopol, cidade ao sul da Ucrânia, nas margens do Mar Negro, que durou de outubro de 1854 a setembro de 1855.
E quem esteve lá? Ninguém mais ninguém menos que um gigante das letras russas: o conde Lev Tolstói. Antes de se dedicar exclusivamente à literatura (e a outras causas), o futuro autor de Guerra e Paz, então um nobre oficial do exército imperial, percorreu o front e seus bastidores.
Dessa experiência nasceram os Contos de Sebastopol, que ganham tradução de Lucas Simone em nova publicação pela Editora 34. Nos três relatos, veremos o heroísmo dos guerreiros e a paixão pela pátria ruírem num cenário de sofrimentos, mutilações e mortes.
Contos de Sebastopol
Não é à toa que Tolstói se tornaria um pregador pacifista quando mais velho: quem presenciou os horrores de uma guerra (não nos livros nem nos filmes e séries de TV) e teve os sentidos tocados e abalados pelas explosões, pelas feridas e pelo odor nauseante de corpos macerados certamente repudiará solução desse gênero.
Como explica o historiador britânico Orlando Figes no texto presente nos apêndices do volume, a Guerra da Crimeia foi o maior confronto do século XIX, com um saldo monstruoso de baixas e efeitos cataclísmicos sobre as antigas alianças e inimizades entre as potências de então. Desencadeou, com suas ondas nacionalistas, os movimentos tectônicos que resultariam, lá no início do século XX, em novas e maiores carnificinas.
Tolstói testemunhou e reconstruiu, em seus contos, o que foi caminhar entre trincheiras, tiroteios e hospitais de campanha. É a guerra nua e crua, que retornaria, com outros soldados e tecnologias, a esse mesmo território em 2014, quando a Rússia mobilizou-se pela anexação da Crimeia, tirando-a das mãos ucranianas.
Dez anos depois, a alguns quilômetros dali, combates seguem vivos. Assim como os escritos de Tolstói.
Com a palavra, o tradutor Lucas Simone.
Em que medida as experiências de Tolstói na Guerra da Crimeia moldaram sua visão de mundo e sua literatura?
É particularmente difícil dissociar a visão de mundo de Tolstói de sua literatura. Se o velho Conde havia granjeado, em seus últimos dias, já no século XX, a fama de pacifista radical, de iconoclasta destemido ou de moralista inflexível, isso se deve, em grande parte, ao que o jovem Lev Nikoláievitch presenciou durante a Guerra da Crimeia.
O leitor atento há de perceber, logo nas primeiras páginas dos Contos de Sebastopol, que qualquer laivo de glamorização da guerra terá sido rapidamente apagado pela brutalidade do front, indizível para a maioria dos mortais, mas matéria fértil para um escritor de tamanho talento. A guerra, ali, não possui a beleza diáfana com que a vemos frequentemente nos clássicos: é lamacenta, caótica, injusta e profundamente sem sentido. E é essa visão que Tolstói carrega ao longo de sua vida e que serve de substrato a muito do que de melhor sua pena produziu.
Os Contos de Sebastopol conversam, em relação à abordagem temática ou ao estilo literário, com outras obras mais famosas do escritor, não?
Sem dúvida. O paralelo mais direto é, evidentemente, com Guerra e Paz: de alguma maneira, Tolstói reaproveita e expande ali algumas imagens que o leitor pode encontrar em Sebastopol. O modo gráfico e espantosamente detalhado com que as operações de guerra são descritas, por exemplo, só poderiam emergir da mente de um homem que de fato esteve num campo de batalha, que sentiu o calor das explosões e que ouviu os projéteis passarem zunindo por cima de sua cabeça.
Mas há um outro tema, muito próximo ao da guerra, porém ainda mais amplo e mais profundo: a morte. Tolstói tinha certa obsessão por ela e, ao mesmo tempo, um medo quase patológico dela. Não à toa, uma de suas obras mais conhecidas é A morte de Ivan Ilitch, um dos livros mais impressionantes e mais tristemente realistas sobre o assunto. Nos Contos de Sebastopol, o jovem Tolstói já demonstra peculiar sensibilidade ao retratar toda a solidão e todo o desconcerto do ser humano ao encarar seu momento extremo.
Quando compara o trabalho de tradução de Tolstói com o de outros autores russos, quais as peculiaridades e desafios da empreitada?
Traduzir um autor da estatura de Tolstói é em si algo desafiador e, em grande medida, temerário: é aquilo que o professor Boris Schnaiderman chamou, com a delicadeza que lhe era peculiar, de um “ato desmedido”. Some-se a isso certa idiossincrasia do velho Conde, que decerto provoca reiteradas dores de cabeças em seus editores e tradutores contemporâneos: ele tinha frequentes “comichões” ao se deparar com a chance de revisar e alterar suas obras, o que fazia de maneira quase compulsiva. O resultado é uma profusão (e muitas vezes sobreposição) de variantes textuais e formulações alternativas, e nem sempre é simples escolher a “melhor” (ou mais apropriada) delas.
Na comparação com outros gigantes da literatura russa, pode-se dizer que Tolstói compartilhava com boa parte deles a inclinação a produzir obras volumosas. No caso de Lev Nikoláievitch, essa amplidão proverbialmente russa é também uma amplidão de temas, ambientes sociais, falares e formas de expressão. Encontramos nele passagens líricas e filosóficas, melancólicas e reflexivas, mas também assustadoramente secas e brutais.
A representação da fala é mais um elemento difícil de ser recriado na tradução: o Conde coloca face a face o aristocrata que se formou cadete no conforto da capital imperial e o praça oriundo das profundezas da Rússia tsarista. Na maioria das vezes, é impossível reproduzir em português, com a elegância do autor essas infinitas nuances do falar. Mas, ao tradutor, resta ao menos tentar, pois é aí que jaz a verdadeira imensidão de Lev Tolstói.