O problema difícil. É assim que alguns filósofos e cientistas se referem ao enigma da consciência. Afinal, como uma rede de células, que respeitam as leis da física, da química e da biologia, dá origem a sentimentos, pensamentos e experiências subjetivas? Pois só uma mente um tanto quanto inquieta para encarar o desafio de tentar desvendar esse complexo mistério dentro de uma casca de noz – o cérebro humano. Freud explica? Talvez.
A inquietude foi o que levou o neuropsicólogo sul-africano Mark Solms, depois de anos investigando neurônios em laboratório, a se encontrar com os escritos de Sigmund Freud (1856-1939) e a disciplina que o pai da psicanálise fundou. Em um insight, o professor percebeu que algumas ideias do médico vienense se conectavam com os mecanismos neurológicos por trás dos sonhos e da consciência que estavam sendo mapeados do final do século XX em diante.
Aliando a trajetória de cientista com a do psicanalista, Solms ajudou a elucidar quais circuitos e regiões cerebrais estão envolvidos não só em nossas viagens oníricas mas também em nossa tomada de consciência do mundo – em outras palavras, como é que sentimos e reagimos à realidade à nossa volta.
E, ao destrinchar e montar o quebra-cabeça, fez trincar o monopólio do paradigma cortical, o pressuposto de que a camada mais superficial e “inteligente” do cérebro, o córtex, é quem dita as regras das nossas experiências. Solms nos apresenta ao papel excitante que o tronco cerebral e outras áreas consideradas mais “primitivas” do sistema nervoso desempenham no processamento dos afetos e no reconhecimento e na interpretação de padrões que nos permitem tomar decisões caras à sobrevivência e ao bem-estar.
Pois é nessa jornada entre células, sinapses, neurotransmissores e regiões de nomes estranhos como sistema de ativação reticular (espécie de guardião da consciência) que o neurocientista nos convida a embarcar em A Fonte Oculta, publicado pela Editora WMF Martins Fontes.
Uma obra que esmiúça desde conceitos da física (incluindo equações matemáticas) até sacadas psicanalíticas para traçar, como diz o estudioso, um quadro geral de como o cérebro produz consciência – e as implicações dessas descobertas para o corpo humano e tecnologias como a inteligência artificial.
Construindo pontes entre a moderna neurociência e o legado de Freud e outras mentes inquietas, o trabalho de Solms ilumina o tal problema difícil com a humildade de quem sabe que ainda há peças a serem desveladas e encaixadas nessa história.
Com a palavra, o autor.
A fonte oculta
O senhor pode nos contar como surgiu o insight de conectar as ideias de Freud às descobertas da neurociência? Houve uma espécie de momento “eureca”?
Quando me formei em neurociência, no início da década de 1980, fiquei desapontado por haver tão pouca compreensão sobre como a fisiologia do cérebro se relacionava com as nossas experiências subjetivas – especialmente porque o fato de o cérebro ter experiência subjetiva é sua característica mais especial. Então, para aprender mais sobre as experiências subjetivas, decidi recorrer à psicanálise e me formar também como psicanalista.
Não houve um momento “eureca” em si, mas uma série de eventos marcantes. Primeiro, fiquei surpreso ao ler o livro de Freud sobre as afasias de 1891, de descobrir como aquilo era bom, porque todos os meus professores me falavam que ele não era um verdadeiro cientista. Depois, li Projeto para uma Psicologia Científica, de 1895, uma leitura de tirar o fôlego, embora um tanto desatualizada, o que me fez pensar que seria maravilhoso atualizá-la. Em terceiro lugar, em minhas próprias pesquisas sobre os mecanismos cerebrais dos sonhos, comecei a perceber que as ideias básicas de Freud sobre como os sonhos funcionavam eram surpreendentemente consistentes com o que eu estava encontrando. Foi aí que decidi me formar psicanalista.
Que mistério ainda o intriga sobre os mecanismos fisiológicos da consciência?
Acredito que agora temos uma compreensão básica da neurofisiologia da consciência. Ela gira essencialmente em torno das propriedades do sistema de ativação reticular, que, por sua vez, está ligado a vários mecanismos homeostáticos reguladores no tronco cerebral, no hipotálamo e em outras regiões do cérebro, mediados por múltiplos hormônios e peptídeos. Para mim, o crucial é entender que todos esses mecanismos fisiológicos propiciam a dinâmica subjacente ao processamento de informações, e essa mesma dinâmica dá origem à experiência subjetiva.
Em outras palavras, a neurofisiologia da consciência e a psicologia da consciência são aspectos duais dessa dinâmica de processamento das informações. Acho que o mistério restante ainda sem solução, se quisermos chamá-lo assim, está em desvendar os detalhes desse processo. Nós já temos o grande quadro geral, agora estamos trabalhando em seus detalhes.
No livro, o senhor fala da perspectiva de criarmos mentes artificiais, mas pondera sobre os objetivos por trás disso. Qual é o aspecto mais perturbador da IA?
O aspecto mais perturbador é que quando – não “se”, mas “quando” – projetarmos mentes artificiais, elas serão exploradas para fins comerciais. Isso não é essencialmente diferente de uma forma de escravidão.
Alguns cientistas chamam a psicanálise de pseudociência, enquanto outros estudiosos defendem inclusive sua abordagem à luz da ciência. O que tem a dizer a respeito?
Quem diz que a psicanálise é pseudociência confunde suas teorias com seu método. O método psicanalítico não é muito bom para o propósito colocado por Popper [referência ao filósofo da ciência Karl Popper] de falsear as teorias psicanalíticas. Mas essas teorias são facilmente falseáveis por outros métodos. Essa é a principal justificativa para trabalharmos com a interdisciplinaridade no campo da neuropsicanálise. Ela utiliza ferramentas científicas para testar e desenvolver teorias psicanalíticas, assim como acontece com outras áreas da psicologia. Nos últimos 35 anos de pesquisas em neuropsicanálise, confirmamos algumas das hipóteses mais básicas de Freud, mas refutamos outras, e, nesse sentido, pudemos desenvolvê-las ainda mais.