Apesar do número cada vez maior de trabalhos que abordam o tema da discriminação no mundo corporativo, reflexões sobre algumas de suas manifestações e dimensões permanecem escassas ou inexistentes, realidade que impede o combate de práticas que causam danos significativos a muitas pessoas e/ou grupos de pessoas. Uma delas está relacionada com normas institucionais – muitas vezes oficiais, muitas vezes informais – que estabelecem um padrão de aparência a ser seguido na contratação e na promoção de funcionários, e que pode também ser motivo de demissão.
Esses parâmetros não são gratuitos, uma vez que correspondem a ideais estéticos correntes, referências utilizadas de modo constante para o julgamento da competência profissional de candidatos e candidatas a emprego. Eles também determinam a atribuição de atividades laborais, embora não sejam indicadores adequados para a designação das funções de empregados e empregadas. Muitos julgados fazem referência à discriminação estética, mas quase nenhum deles reconhece essa prática como uma manifestação particular de tratamento arbitrário que precisa ser analisado a partir de critérios específicos pelo nosso sistema judiciário.
Eles não oferecem uma definição desse problema e vários deles abordam a discriminação estética como expressão de outras formas de arbitrariedade, como o racismo, o sexismo ou a gordofobia. Embora esse procedimento garanta ressarcimento econômico pelos danos causados por empregadores às vítimas desse tipo de tratamento desvantajoso, a ausência de um entendimento dos processos psicológicos, culturais e institucionais envolvidos no fenômeno da discriminação estética traz prejuízos consideráveis a vários grupos de pessoas ao longo de toda a vida laboral.
Três exemplos que retratam situações bastante comuns nos ajudam a entender esse fenômeno de maneira mais objetiva. Edweyne Martins foi impedido de cumprir sua jornada de trabalho em função de uma norma que proibia funcionários de uma empresa de transporte urbano de usar barba ou cavanhaque; a violação dessa regra implicaria sanções disciplinares. O sindicato que congrega os trabalhadores da classe ajuizou uma ação requerendo a declaração da invalidade dessa norma, por ser, segundo eles, discriminatória.
O Tribunal Superior do Trabalho (TST) entendeu que ela estabelece um padrão de aparência pessoal que viola o direito de as pessoas poderem controlar a própria aparência física, motivo pelo qual a regra em questão poderia ser classificada como exemplo de discriminação estética. Para o órgão julgador referido, não haveria nenhuma correlação entre tal exigência e as habilidades necessárias para o desempenho de quaisquer funções, e nem sequer haveria algum aspecto da atividade profissional que justificasse essa norma, uma vez que ela não pode causar nenhum tipo de risco. A ministra relatora classificou tal regra como um exemplo de discriminação estética, mas não ofereceu uma justificação baseada em uma conceituação dela; ela apenas afirmou que a exigência era inadequada por ser uma violação dos direitos da personalidade.
Discriminação estética
Marília da Silva trabalhava como telefonista em uma empresa. Seus superiores estavam insatisfeitos com sua aparência porque ela mantinha seus cabelos crespos. Eles exigiram que ela passasse por um processo de alisamento para que se aproximasse do que consideravam ser um ideal estético adequado aos padrões da firma. Além de exigirem que ela submetesse seu cabelo a esse tipo de tratamento, seus superiores pediram que ela o mantivesse preso. Sua recusa gerou uma série de humilhações também de colegas brancas: enojadas com o cabelo daquela mulher negra, elas diziam que raspar seria a única solução, porque ele era muito feio.
O empregador condicionou o emprego ao alisamento, o que levou a mulher negra a acatar tal exigência. Nosso sistema judiciário considerou essa prática como um tipo de discriminação estética, mas não apresentou nenhuma definição precisa desse tratamento discriminatório. O juiz que analisou o caso apenas afirmou que a exigência de alisamento poderia ser classificada como uma interferência indevida na esfera pessoal, direito que não assiste aos empregadores.
Joilda Oliveira de Abreu é uma mulher negra que trabalhava em uma grande rede internacional de supermercados. Seu chefe sempre fazia referências pejorativas à sua obesidade, dizendo que mulheres tão gordas como ela não deveriam ter contato com os clientes. Esse tipo de comportamento também era reproduzido por outros funcionários, pessoas que, seguindo o exemplo do chefe, faziam comentários jocosos persistentes em relação a ela, o que a motivou a pedir demissão e processar a empresa. O TST identificou a incidência do racismo e do sexismo, mas não ofereceu uma análise dos motivos pelos quais esses dois tratamentos discriminatórios poderiam ser classificados como discriminação estética ou da dinâmica deles nessa prática discriminatória.
Esses casos demonstram dois aspectos de um problema amplamente ignorado. De um lado, temos a crença social de que a aparência das pessoas não tem consequências significativas em sua vida social, incluindo o ambiente de trabalho. Essa premissa não encontra base na realidade das sociedades modernas: a adequação ou o distanciamento de padrões estéticos institucionalizados afeta os mais diversos aspectos da vida dos indivíduos, entre eles a vida profissional.
Do outro, temos uma realidade social cuja dinâmica não é adequadamente compreendida pelo nosso sistema judiciário. É certo que nossos magistrados recorrem a certos princípios para proteger empregados, como o princípio protetor e o da permanência, mas a ausência de um estudo adequado da dinâmica da discriminação baseada na aparência impede maiores níveis de proteção jurídica. Tendo em vista a ampla frequência e invisibilidade desses casos, a quase inexistência de trabalhos que abordam esse tema e a ausência de compreensão da dinâmica interna do fenômeno da discriminação estética, este livro examina as práticas institucionais que buscam a homogeneização do corpo de funcionários de empresas privadas por meio de preferências estéticas.
Nossos tribunais estão certos: esse fenômeno, que pode ser classificado como uma prática discriminatória porque viola os direitos da personalidade, suprime a autenticidade dos indivíduos, além de ter um impacto desproporcional sobre membros de grupos subalternizados. Entretanto, é preciso entender as particularidades de sua dinâmica interna e também compreender sua dimensão cultural e institucional. A discriminação estética ocorre por meio da imposição de padrões de beleza com o propósito de padronizar a aparência de empregados e empregadas, o que acarreta problemas na preservação da diversidade da população brasileira dentro do espaço laboral, além de restringir oportunidades profissionais para membros de vários grupos, em especial mulheres e minorias raciais.
Embora não seja prevista em qualquer norma legal, a não ser que coincida com algum critério juridicamente protegido, a discriminação estética está amplamente presente no espaço laboral, sendo um problema que afeta todos os indivíduos que não correspondem aos ideais de beleza ou de apresentação pessoal de força normativa na sociedade brasileira.
Estamos, então, diante da seguinte questão: a pressão por conformidade estética no setor privado pode ser considerada uma violação dos princípios da igualdade, da liberdade, da cidadania, da dignidade humana e da justiça social previstos na Constituição Federal? Partiremos da hipótese de que podemos, sim, classificar esse fenômeno como uma prática discriminatória, visto que traz desvantagens significativas para muitos indivíduos, violando um aspecto relevante do princípio constitucional da igualdade, que é a equidade de tratamento entre pessoas igualmente situadas, preceito central também das noções de dignidade humana e de justiça social.
Observaremos que a luta contra esse tipo de tratamento diferenciado encontra muitas dificuldades. Ele pode estar baseado em diferentes aspectos da aparência e operar de maneiras diversas, motivo pelo qual muitos atores sociais acreditam que ele não pode ser efetivamente combatido; ele representa consensos coletivos sobre modos de apresentação dos indivíduos no espaço corporativo, consensos baseados em referências estéticas identificadas com grupos sociais específicos.
Muitos indivíduos acreditam que, independentemente de suas manifestações ou consequências, o tratamento diferenciado está dentro da discricionariedade dos empregadores, porque eles devem ter o poder de determinar as características das pessoas que querem empregar. Como a aparência é um fator central na maneira como a vasta maioria das pessoas estabelece relações interpessoais, a discriminação estética encontra também altos níveis de aceitação social, mesmo porque ela encontra base nos mesmos mecanismos psíquicos que as pessoas utilizam para determinar com quem elas se associarão e com quem elas estabelecerão relações meramente cordiais.
Acreditamos que esta investigação seja muito relevante para o avanço dos estudos do direito antidiscriminatório, uma vez que ela nos permitirá compreender a dinâmica interna de práticas que impõem desvantagens a parcelas significativas de nossa população. Também trabalharemos com a hipótese de que a discriminação estética apresenta um caráter interseccional, porque agrava ainda mais a situação de grupos que já se encontram em uma posição de desvantagem, como no caso de coletividades atingidas por dois ou mais vetores de discriminação.
Isso ocorre porque a proximidade com o ideal estético branco é um requisito para que as pessoas possam ter acesso a oportunidades profissionais, uma vez que ela pressupõe maior respeitabilidade social. À questão racial, somam-se outros critérios que expressam preferências estéticas, o que torna indivíduos que pertencem a mais de um grupo subalternizado vítimas de um problema que os acompanha ao longo de toda a vida, em todos os setores.
Além de teorias de discriminação e de conceitos da psicologia social da discriminação, recorreremos a estudos filosóficos e sociológicos sobre estética e beleza para entendermos a dinâmica psíquica e cultural dos julgamentos baseados na aparência. Observaremos que eles são valorações morais amplamente relacionadas com a institucionalização de um padrão de beleza identificado com traços fenotípicos de pessoas racializadas como brancas, especialmente aquelas de aparência ariana.
Esse ideal estético é insistentemente difundido nos meios de comunicação de massa, sendo um aspecto central do processo de socialização dos indivíduos. Mais do que isso, eles são utilizados por membros de todas as culturas e de todas as raças, indistintamente. A proximidade com o fenótipo branco é um ideal buscado até mesmo em países habitados majoritariamente por indivíduos não brancos.
Embora não se resuma à imposição de traços fenotípicos brancos que se tornaram critérios universais de julgamentos estéticos, esse tipo de tratamento desvantajoso expressa uma tentativa de empresas de promover a homogeneização do corpo de funcionários com a intenção de estabelecer uma associação entre qualidades de serviços e aparência física, mecanismo que beneficia certos grupos de pessoas e prejudica outros de maneira sistemática. A exploração desse tema se mostra relevante porque ele é um dos principais mecanismos de reprodução de disparidades sociais, mas seus métodos de operação permanecem amplamente desconhecidos pelo nosso judiciário.
Este livro tem como propósito principal desenvolver uma discussão do tema da discriminação estética, um problema pervasivo na nossa sociedade, cujos mecanismos ainda permanecem obscuros. Pretendemos, com isso, apresentar uma contribuição para o avanço de um campo do direito antidiscriminatório ainda pouco explorado na nossa literatura. Inspirados em trabalhos que representam o mundo corporativo como um espaço no qual dinâmicas culturais presentes em outros âmbitos sociais se repetem para reproduzir processos de estratificação, utilizaremos uma perspectiva multidisciplinar para abordar essa realidade.
Teses filosóficas, psicológicas, sociológicas e jurídicas servirão de ponto de partida para a identificação dos mecanismos responsáveis pela existência desse problema dentro de uma área crucial para a integração social dos indivíduos. Elas também serão o ponto de partida para o encontro de possíveis soluções para esse fenômeno por meio do qual mecanismos de exclusão operam na nossa sociedade. Esperamos, com isso, fornecer parâmetros para que nossos tribunais possam fundamentar suas decisões de forma mais sólida e para que empregadores reformulem práticas institucionais que violam uma pluralidade de direitos fundamentais.
Assim, se de um lado procuramos construir um aparato conceitual que possa guiar a análise de operadores jurídicos, por outro, apresentamos uma série de argumentos que podem servir para que empregadores transformem práticas institucionais. Este livro também oferece elementos para que trabalhadores e trabalhadoras possam compreender diferentes aspectos dos problemas que afetam suas chances de empregabilidade e suas trajetórias profissionais. Pensamos, então, que esta obra contribui para as reflexões sobre o direito antidiscriminatório ao oferecer um conjunto de elementos a partir dos quais podemos identificar a dinâmica de processos discriminatórios, bem como direções para sua superação.
* Adilson José Moreira, Gabriela Doll Martinelli, Helena de Araújo Bento, Luana Pereira da Costa e Rafaella Pavanello Palmieri são os autores de Discriminação Estética, livro que acaba de ser publicado pela Editora Autêntica