No início do século XXI, a política global atingiu um marco importante. Pela primeira vez, o número de democracias no mundo ultrapassou a contagem de Estados autoritários. Quando essa “terceira onda” sísmica atingiu seu ápice, especialistas identificaram 98 países com governos livres, em comparação aos 80 ainda controlados por ditadores. O otimismo era contagiante. As novas tecnologias de informação, a globalização e o desenvolvimento econômico pareciam anunciar o fim do domínio dos “homens-fortes”. Com a modernização dos países, a tirania estava se tornando obsoleta.
As celebrações não duraram muito tempo. Na verdade, elas mal começaram. Dentro de poucos anos, o avanço da liberdade foi se reduzindo, produzindo o que alguns rapidamente denominaram “recessão democrática”. Uma dramática crise financeira, originada nos Estados Unidos, levou a economia global ao colapso, minando a fé na governança ocidental. Em 2019, o número de democracias havia caído para 87, enquanto o de ditaduras voltou a subir para 92.
No Ocidente, o liberalismo estava se revelando um páreo fraco para o populismo, enquanto no Oriente todos os olhares estavam voltados para a ascensão meteórica da China. A exuberância da virada do milênio deu lugar a uma sensação de desânimo.
O pessimismo político atual é um pouco exagerado. Afinal, pela maioria das medições, a democracia em termos globais permanece não muito abaixo de seu nível mais alto de todos os tempos. Mas o humor sombrio de hoje aponta para um verdadeiro enigma. Mesmo que as ditaduras não estejam dominando o cenário político, a questão é como elas ainda conseguem sobreviver – e mesmo prosperar – em nosso mundo ultramoderno.
Afinal, por que, depois de todos os desvarios brutais do século XX – do fascismo ao comunismo – terem sido desacreditados, ainda vemos novas autocracias surgindo das cinzas? E o que dizer dos tiranos que estão adotando ferramentas da modernidade e usando tecnologias ocidentais para desafiar os modos de vida ocidentais?
Com sua população incomparável e seu crescimento explosivo, a China tem sido apontada como o contra-argumento à democracia liberal. Seu sucesso econômico – pouco prejudicado pela crise de 2008-2009 ou mesmo pela crise da covid de 2020 – parece contradizer a equação que prega o desenvolvimento sob o domínio da vontade popular.
No entanto, à parte as metrópoles Pequim e Xangai e os reluzentes entrepostos de Hong Kong e Macau, a maior parte do país permanece um tanto pobre, com sua população ainda susceptível a ser controlada por métodos da era industrial e até mesmo pré-industrial.
O maior enigma é a sobrevivência de governos não livres em sociedades afluentes como Singapura e Rússia, onde diplomas universitários são mais comuns do que na maioria das democracias ocidentais. Será que tais casos oferecem um vislumbre de um futuro autoritário?
Democracia fake: A metamorfose da tirania no século XXI
Este livro é uma tentativa de explicar a natureza das ditaduras atuais. Ele nasceu de um misto de pesquisa e experiência pessoal. Ambos passamos anos acompanhando a ascensão do sistema de Putin na Rússia, por meio da análise acadêmica e da observação em primeira mão. Seu regime veio a nos parecer não exatamente único, mas um exemplo de tendências que vieram remodelando Estados autoritários em todo o mundo – da Venezuela de Hugo Chávez e da Hungria de Viktor Orbán à Malásia de Mahathir Mohamad e ao Cazaquistão de Nursultan Nazarbayev.
Observadores têm dificuldades para classificar esses líderes. Alguns se dobram à pantomima de democracia que eles oferecem; outros tentam fazer analogias estranhas com tiranos históricos, rotulando Putin como “czar” ou Erdoğan como “sultão”. Vemos todos esses governantes como que convergindo rumo a uma abordagem inovadora – embora não sem precedentes – que pode preservar o modelo autocrático por mais algum tempo, mesmo em um cenário moderno e globalizado.
A chave para isso é a enganação: a maioria dos ditadores de hoje esconde sua verdadeira natureza. Portanto, o primeiro passo é entender como eles operam. Neste livro, exploramos por que esses regimes surgiram, como eles funcionam, que ameaças representam e como o Ocidente pode melhor resistir a eles.
* Autores do livro Democracia Fake, que acaba de ser publicado pela Editora Vestígio