Um dos gênios da pintura está incomodado com um problema na vista e lhe indicam um notável oftalmologista, que inclusive inventou um dispositivo para curar pessoas que nasceram cegas. É assim que, em um belo dia no sul da França, o grande Paul Cézanne bate na porta do consultório de Barthélemy Racine, médico inspirado num personagem real que, obcecado pelos órgãos da visão, anotou os testemunhos de pacientes operados de catarata congênita que começaram a enxergar depois de adultos.
É ao redor desse encontro imaginado pela escritora francesa Anne Sibran que se desenrola o romance O Primeiro Sonho do Mundo, traduzido por Adriana Lisboa e publicado pela editora Relicário. Um livro que ilumina a perspectiva de (re)aprender a enxergar a vida, a natureza, os outros…
Estamos nas fronteiras entre os séculos XIX e XX. Paul Cézanne é o famoso artista pós-impressionista, autor de obras como Mont Sainte-Victoire visto de Bellevue (1896) e As Banhistas (1898), para quem pintar é desaparecer dentro da paisagem retratada. Barthélemy Racine é um médico-inventor que se esmera em tratar olhos toldados por doenças e, em suas andanças pelo mundo, conhece e traz da América a terceira figura central desta história, sua esposa Kitsidano, uma mulher indígena e cega de nascença.
O primeiro sonho do mundo
É da confluência desses personagens, tendo como pano de fundo as montanhas, bosques e clareiras que Cézanne busca incorporar às suas telas – não mera paisagem, mas outra personagem do livro -, que brotarão as reflexões e os dilemas que envolvem nossa (in)capacidade de ver o mundo. Literal e metaforicamente.
“Gostaria de redescobrir as sensações que temos ao nascer”, diz o pintor francês. E quais seriam as sensações de alguém que, depois de anos de escuridão (?), depara com uma miscelânea de estímulos visuais?, pergunta-se o oftalmologista. Até que ponto “abrir” esse sentido a quem aprendeu a viver sem ele redefiniria seu jeito de estar no mundo e entendê-lo?, pondera Kitsidano.
E, aos que enxergam, será que podemos mudar e moldar nossas percepções a ponto de cuidarmos melhor uns dos outros e da terra que compartilhamos? Afinal, a ciência e a arte seriam as melhores ferramentas para operar essa transformação no olhar?
Se a poesia está nos olhos de quem vê, o romance de Anne Sibran joga luz na paisagem viva que nos cerca e, acima de tudo, em nós mesmos.
Com a palavra, a autora.
Como surgiu a ideia de escrever um romance que cruzasse os destinos de um grande pintor e de um cientista tão inquieto e inventivo?
Fui a Amazônia equatoriana investigar os desastres da exploração extrativista. E esse trabalho de campo em Shiripuno teve tanto impacto em mim que decidi fazer uma pausa e trabalhar a questão da beleza ao longo de um romance. Há algo de fascinante no desastre, enquanto a beleza está sempre do lado da vida. Então pensei em Paul Cézanne, a quem sempre admirei e um sujeito que colocou a beleza no centro de sua vida. Ele viveu na Provença numa época em que o mundo se voltava em direção ao produtivismo e já se via que as coisas estavam se modificando.
O que comove em Cézanne é que, do seu ponto de vista, a beleza é também uma busca interior, e pintá-la é desaparecer na natureza bem onde ela está, como ele mesmo disse, é renascer com ela. A questão da beleza tem algo a ver com a iniciação: cada momento de beleza tem um caráter de primeira vez.
Foi então quando descobri que dois homens, completamente diferentes, se faziam quase a mesma pergunta e ao mesmo tempo, um cientista e um artista, e assim senti que o projeto do livro estava aí. Para Cézanne, isso era inclusive uma obsessão. Ele dizia com frequência enquanto pintava: “Gostaria de redescobrir as sensações que temos ao nascer”. Quer dizer: parar em frente a uma árvore, sem saber que é uma árvore.
Já Barthélemy, que opera pessoas cegas desde o nascimento – muitas delas já adultas e, portanto, em condições de se expressar -, decide anotar em seus cadernos testemunhos sobre o que elas sentem e percebem depois da cirurgia. O que veem quando abrem as pálpebras e enxergam pela primeira vez? Isso, é claro, nós esquecemos, mas seus pacientes sabem descrever e contar para ele. Esses testemunhos comoventes são muito próximos ao que Cézanne descreve quando pinta.
Seu livro nos faz pensar que a arte e a ciência são as melhoras ferramentas para mudar nossa visão de mundo – sobre a natureza, as pessoas… Acredita que elas mantêm essa força nos complexos tempos que vivemos?
Não, não acredito que a arte e a ciência sejam as melhores ferramentas para mudar nossa visão sobre o mundo, a natureza e as pessoas. Penso que existam outras. E que é possível começar a mudar saindo de casa, dando um passeio no bosque, conhecendo outras pessoas… Acredito que, diante dos desafios que nossa querida Terra atravessa, a arte e a ciência devem contribuir para tais reconexões. Surpreender, conscientizar e responsabilizar cada indivíduo, para que ele se torne consciente de tudo o que pode fazer onde está.
Até que ponto podemos treinar nosso olhar para apreciar a beleza da natureza e respeitar mais nosso planeta e as outras criaturas com as quais convivemos?
Acredito que não há limites. Que o olho pode se aperfeiçoar por meio do contato com o que encontra. E acho que esses encontros, essas fusões, essas descobertas com outros seres vivos – sejam animais, árvores ou homens – nos dão muita força e alegria. Ainda que essa abertura signifique que, no fundo, também possamos presenciar feiuras e desastres, claro.
Penso que outros povos, os ancestrais em particular, em constante diálogo com outras formas de vida, podem despertar em nós intensas recordações da infância, quando sabíamos comungar com o todo e viver o momento presente. Isso ainda está dentro de nós. Só temos de despertá-lo.