A imaginação preenche os buracos da linguagem, reflete autora sobre surdez
Francesa recorre à própria experiência em livro que, através da deficiência auditiva, explora o senso de pertencimento e os limites da língua
Uma permanente indagação sobre os poderes e as lacunas das linguagens percorre o livro Águas-Vivas Não Têm Ouvidos (Fósforo), da escritora francesa Adèle Rosenfeld. Narrado por uma protagonista com déficit auditivo, o romance retrata os obstáculos e as transcendências de quem precisa encontrar outras formas de escutar o mundo e se comunicar com ele.
Finalista do prêmio Goncourt, o principal galardão literário da língua francesa, a obra acompanha uma mulher jovem que convive, desde cedo, com a perda progressiva da audição – e a quem os médicos indicam um implante coclear, dispositivo instalado numa pequena cirurgia para reaver a capacidade de ouvir.
Num texto marcado pela sinestesia e a mistura dos sentidos, Adèle, que também vivencia a surdez, faz da imaginação sua aliada tanto para expressar aquilo que os “ouvintes” não costumam perceber como para tampar os buracos da língua convencional, falada ou escrita.
Numa zona cinzenta entre os surdos completos e aqueles que escutam, a personagem aborda as nuances do senso de pertencimento a um grupo e as angústias por trás de uma escolha (colocar ou não o implante) que inevitavelmente irá repercutir em sua relação com os outros e o mundo.
Explorar possibilidades e entender melhor o(s) outro(s) é, sob a sua ótica, um dos poderes únicos da literatura. Fã de Anna Karenina, de Tolstói, obra que condensa essas propriedades a seu ver, Adèle conta que um título fundamental em sua construção literária e que, por isso, ela relê regularmente é Les Saison (As Estações), do conterrâneo Maurice Pons. “É burlesco, perturbador, pegajoso e feroz, trata de um universo singular com uma escrita cinzelada”, diz.
Águas-vivas Não Têm Ouvidos
Com a palavra, a autora.
Como se desenvolveu a ideia de trazer a questão da deficiência auditiva para o centro de um romance?
Esse assunto pessoal se impôs a mim. A perda auditiva foi para mim um assunto muito literário, pois tocava na questão de uma relação íntima com a linguagem. Eu queria mostrar uma língua que tem buracos e as estratégias para preencher esses buracos através da imaginação. A questão da escuta era, na minha opinião, um tema eminentemente romanesco que tive vontade de explorar. Há também uma parte política e íntima que quis desdobrar em torno da deficiência invisível. Inspirei-me na minha própria experiência como surda, depois na de pessoas surdas que pude conhecer e na de médicos especialistas. Havia problemáticas únicas que eu queria trazer para a literatura.
O que você aprendeu e quis transmitir com o livro a respeito dos limites e das possibilidades das linguagens?
Quis explorar a ideia de que, quando o acesso a uma língua é impedido, neste caso através de uma personagem que perde a audição e que se sente cada vez mais estranha à sua língua materna, essa falta acentua a necessidade da linguagem, a necessidade de imagens, a necessidade de interrogar a própria língua.
É assim que a minha narradora Louise percebe que a linguagem é estranha, que os sons e seus significados nem sempre correspondem. A imaginação vem preencher a ausência, os silêncios, as palavras distorcidas. E a narradora inventa figuras imaginárias, cria um herbário sonoro onde registra com poesia os sons que julga estarem faltando… Portanto, ela usa a linguagem de forma diferente para compensar o que está deformado.
Essa é também uma oportunidade de colocar em cena a linguagem de sinais, de descrevê-la e mostrá-la como uma língua própria e única. Então a personagem questiona os limites da língua. Talvez o fato de já não ouvir, de ficar totalmente surda e não escutar mais o mundo seja também uma forma de se retirar desse mundo naquilo que ele tem de desfuncional e de regressar a uma etapa anterior à linguagem, onde a poesia, o jogo e a infância recuperariam seu espaço, sua cidadania.
Mas Louise também está presa ao amor pela língua materna, à língua francesa e, portanto, quer continuar a ouvi-la. Daí a questão de querer ficar com aquilo que lhe é familiar e optar pelo implante [coclear].
Até que ponto a arte, especialmente a literatura, pode nos ajudar a reconhecer, entender e respeitar o outro e as diferenças, como se experimenta lendo seu livro?
A literatura é o lugar onde podemos acessar outra interioridade – e por nossa plena vontade. É um ponto de encontro pacífico, pois ninguém nos obriga a ler o livro que temos em mãos, o que cria disposições excepcionais para a descoberta da alteridade. Há na ação de ler uma relação tão singular, íntima, que se tece no silêncio. E o romance na sua forma livre permite explorar o campo das possibilidades, explorar a complexidade e os paradoxos da realidade de uma maneira mais sensível.