Outro dia, procurando meu celular, encontrei-o plugado em uma tomada na sala de jantar. Apesar da minha pressa, deixei o olhar passear vagarosamente pelo ambiente, vazio e na penumbra. Mergulhei na atmosfera e viajei no tempo. Lembrei-me da importância desse espaço para minha família. Nas reuniões, nós, as crianças, éramos acomodadas em uma mesa menor — um ensaio para a vida adulta. A lembrança me fez refletir. Tão central para as famílias, a sala de jantar passou os últimos anos um tanto esquecida, como se recoberta por uma fina camada de poeira alegórica, lá depositada pela negligência imposta por um novo ritmo de vida, mais acelerado. É como se, infelizmente, as famílias contemporâneas não mais dispusessem do tempo alongado que uma reunião em torno de uma mesa requer. Em casa, os múltiplos afazeres resultavam em almoços e jantares ligeiros sobre o colo, não raramente num sofá em frente à TV, o que é lamentável, até porque dessa maneira acaba-se comendo além do apetite. Por tudo isso, a vida moderna parecia querer aposentar precocemente a sala de jantar. Aos poucos, ela foi caindo em desuso, até que…
Até que a pandemia, por vias tortas, tratou de revalorizá-la, depois que o confinamento prolongado fez com que as pessoas prestassem mais atenção ao ambiente doméstico. Hoje, a sala de jantar, se não é mais apenas um altar dedicado às refeições, está sendo reinventada. Acabou se transformando em uma extensão da sala de estar, mas com funções ampliadas. Ali também se trabalha e, em casas com crianças, é ainda um lugar de aprendizado. Em alguns momentos, laptops, blocos, canetas, celulares e livros espalhados sobre a superfície são um lembrete do home office. O nome do jogo é versatilidade.
“O confinamento fez com que as pessoas prestassem mais atenção ao ambiente doméstico”
Essa segunda vida da mesa da sala de jantar, por assim dizer, mantém o essencial do propósito a que serviu durante séculos, que é conectar pessoas, ao criar condições ideais de diálogo, um dos pilares da civilização. A nova mesa resguarda o atributo de juntar gente ao redor de um objetivo comum, que pode ser fazer uma refeição, pôr a conversa em dia ou aprender uma lição. A sala de jantar continua sendo, portanto, um local de troca — de ideias, de experiências. Em relação a esse móvel, não deveria caber o sentimento de melancolia por um passado que não se repete. Melhor é olhar para a frente — para o “presente das coisas futuras”, como dizia Santo Agostinho, para quem só o tempo presente existe de fato (para ele, o passado seria o “presente das coisas passadas”).
Uma boa dose de criatividade sempre ajuda a identificar uma solução naquilo em que mentes acomodadas só veem um problema. Às vezes basta uma pequena adaptação. Uma cristaleira pode ser também uma estante, com livros e taças convivendo harmonicamente. Uma cadeira pode ceder lugar a uma poltrona confortável. Ring lights descolados podem destronar lustres pesados. As coisas mudam de lugar, mas não devemos perder de perspectiva aquilo que realmente importa. Num momento em que nossa rotina é menos engolida por deslocamentos e imprevistos, saborear minutos a mais na companhia de pessoas queridas é um luxo possível que não deve ser desperdiçado.
Publicado em VEJA de 13 de outubro de 2021, edição nº 2759