No Museu de Belas Artes de Lyon, capital gastronômica francesa, há um quadro peculiar. Nele, três homens e uma mulher comem, com muito prazer, uma bela ricota. A tela, pintada no século XVI pelo italiano Vincenzo Campi, não é especialmente agradável ao olhar. Mas chama a atenção o deleite dos personagens por um alimento que muitos consideram sem graça.
Deixo claro que não estou nesse time. A associação da ricota às dietas restritivas pode explicar, em parte, o desagrado que, às vezes, ela atrai. Mas ela não é só magra como tem uma textura versátil. Uma combinação clássica é a da ricota com espinafre, que adoto muito nas minhas receitas. É, de fato, um dos laticínios mais ricos em nutrientes que existem.
O leitor atento verá que eu não disse “queijos” – pois ela é um subproduto destes. O nome “ricota” vem do latim “recoctus”, cozido duas vezes, pois assim ela é feita. O soro derivado da fabricação de queijos como o parmesão é levado ao fogo, obtendo-se grumos prensados e drenados em cestos perfurados. Sai o líquido e fica a ricota.
Faz mais de 4.000 anos que ela surgiu, na Suméria. Dali foi para a Babilônia e, num pulo, chegou ao Egito. Em terras de Cleópatra, começou a ter a cara atual. Marinheiros gregos a compravam dos egípcios antes de zarpar de volta e, com o tempo, aprenderam a fabricá-la.
Tão apreciada se tornou na Grécia que até na “Odisséia” de Homero ela figura. Também os romanos antigos a pintaram e cantaram. Em Pompeia, um afresco retrata o creme branco acomodado em seu inequívoco cesto. Já o poeta Virgílio atribui sua descoberta ao pastor Aristeu, filho de Apolo e da ninfa Cirene, que havia aprendido a trabalhar o leite com as musas. Seria, assim, uma espécie de presente dos deuses.
No mundo dos homens, seus pais são os pastores – e os da Itália, os mais zelosos. Diz-se que, no país, famílias guardavam sua própria receita em segredo e que, certa vez, um jovem pastor teve de provar sua habilidade no preparo para pedir sua amada em casamento. É que o processo, embora pouco tenha se alterado, gera muitas variações.
A ricota pode ser de vaca, de cabra, de ovelha, de búfala; seca, defumada ou cremosa. Só na Itália, existem 75 tipos. Ela é tão ligada à alimentação local que existe até uma Madona da Ricota, celebrada em Carlantino, na Puglia. Ali, pastores de regiões vizinhas se reuniam para alimentar seus rebanhos em um monte sem dono, evitando pagar taxas. Em agradecimento, ergueram uma igreja a Nossa Senhora da Anunciação e nela deixavam oferendas lácteas para a santa, que ganhou esse apelido.
Doces sicilianos, como os cannoli, são feitos com ricota, bem como a pastiera, orgulho de Nápoles. Isso sem falar nas massas recheadas e na famosa “pasta alla Norma”, que a destaca ao lado da berinjela e do tomate.
Mas ela, em si, não é uma gulodice. É cheia de cálcio e de vitaminas, mas baixa em sódio. E é ótima fonte de proteínas – basta lembrar que “whey” é o nome em inglês do mesmo soro do qual ela vem.
Conta-se que, com a ascensão da florentina Catarina de Médicis ao trono francês, no século XVI, houve um refinamento da gastronomia italiana, e a ricota ficou associada à mesa dos pobres – gente como a retratada no quadro do início do texto. Esses, que continuavam a reconhecer suas qualidades, pelo jeito sabiam das coisas.