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O menino que escapou de tudo

Abilio viveu em plenitude e não teve a vergonha de ser feliz

Por Lucilia Diniz Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 3 jun 2024, 17h28 - Publicado em 1 mar 2024, 06h00
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  • Quando Abilio era pequeno, o homem do saco o levou. Nossa mãe deu pela falta e correu atrás deles. Conseguiu recuperar o menino quando já estavam na Avenida Paulista. Essa era a história que ouvíamos em casa sobre nosso irmão mais velho. Agora, quase duas semanas depois de sua partida, mesmo se eu corresse a cidade inteira, nada o traria de volta. Ao mesmo tempo, o que poderia realmente nos tirar o Abilio?

    A lenda urbana transformada em anedota por Dona Floripes, talvez para nos manter afastados da rua, acabou tendo outro efeito. O episódio que não presenciamos e, por isso, não podíamos desmentir cunhou um mito: Abilio sempre escaparia de tudo.

    Não à toa minha primeira reação à sua perda foi considerá-la “inacreditável”. O tempo vai passando e é inevitável aceitar. Mas, em alguma medida, parte de mim ainda duvida. Não por causa da anedota materna, mas por tudo o que vi depois.

    Para escapar de um dos maiores malfeitores de nossa infância, ainda que com a ajuda da mãe, ele teria de ser muito forte, pensávamos os mais novos. Ele parece ter compreendido e introjetado essa resistência. Tornou-se atleta e fez do exercício não só força física e moral, mas um hábito e um prazer.

    Adorava a música O que É, o que É ?, de Gonzaguinha, que nos lembra que a vida “é bonita e é bonita”

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    O menino inteligente e forte era, ao mesmo tempo, muito sensível, qualidade que preservou vida afora. Talvez tivesse a ver com a fé, herdada de mamãe. De ir à missa com ela, ele nunca fugiu. Abilio também tinha uma boneca e, apesar de ser um brinquedo incomum entre garotos, não a escondia jamais. Acredito que já ali ele estivesse desenvolvendo sua capacidade de cuidar e acolher.

    Porque ele olhava por todos. Ajudou a consolidar o negócio fundado por nosso pai, Valentim, de quem herdou a agudeza comercial. Tal como ele, também, foi um cidadão empenhado em servir ao país e aos brasileiros, um conselheiro disputado em múltiplas instâncias. Cuidou, naturalmente, da família que formou. E também de si, para poder fazer tudo isso; manteve-se livre de males crônicos tão comuns em alguém de quase 90 anos. Aliás, ninguém via os 87 anos de Abilio como uma idade avançada. Todos, ele inclusive, tínhamos a convicção de que passaria dos 100.

    Adorava a música O que É, o que É?, de Gonzaguinha, que nos lembra que a vida “é bonita e é bonita”. Tinha apetite por ela, a qual nunca se permitiu ver como uma simples sucessão de dias alinhados. Impossível para ele desperdiçar tempo. O espírito de desafio e de diligência, nele inato e estimulado pelo esporte, era o seu combustível. Era insaciável no desejo de realização, mas também na fome de saber. Praticava “a beleza de ser um eterno aprendiz”. Com sabedoria, dizia também que “se você não tem conhecimento de quem realmente é, pode se tornar seu maior inimigo”. Tendo vivido e sonhado grande, nunca fez questão de ser “algodão entre cristais”. Ao contrário, Abilio sabia muito bem quem era e fazia valer seu desejo.

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    “Ninguém quer a morte / só saúde e sorte”, dizem os versos da canção de Gonzaguinha. Por mais que o quiséssemos para sempre conosco, penso que nenhum conselho poderia ter impedido a vontade de Abilio. A letra da música ainda pergunta se a vida é maravilha ou sofrimento, alegria ou lamento. Eu acho que ela é tudo isso, e daí sua beleza. Abilio, meu irmão, viveu e não teve vergonha de ser feliz.

    Publicado em VEJA de 1º de março de 2024, edição nº 2882

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