O calendário diz que 18 de outubro é Dia do Médico. Para mim, porém, poderia ser o Dia do Amigo. Digo isso porque, ao longo dos anos, acabei me tornando próxima de muitos dos profissionais que escolhi para cuidar de mim. E é muito natural que tenha sido assim. Se a confiança é a base de um relacionamento pessoal, ela é também atributo fundamental no vínculo entre médico e paciente. Sem confiar totalmente no médico, como colocar nossa vida em suas mãos?
É importante ter pelo médico a alta estima que nos permita ficar à vontade para abrir o coração (e os envelopes de laboratório). Mas é igualmente importante ouvirmos o que ele tem a dizer, em vez de nos concentramos no que desejamos ouvir. Quando há algum ruído nessa comunicação, a culpa é sempre do paciente, pode acreditar. Se não gostamos do que ouvimos no consultório, erguemos o equivalente a uma barreira linguística, como se, de repente, o médico estivesse falando um idioma incompreensível. Esse é um erro que o paciente não deve cometer. O médico, diferentemente do amigo, nunca dá conselho. Ele oferece orientação profissional baseada em anos de estudo e prática.
A verdade é que o que se ouve no consultório não são palavras de amigo. É algo de outra ordem. Ao contrário do amigo, o médico não está lá para dizer o que a gente quer escutar. Afinal, ele não precisaria de uma vida inteira dedicada aos estudos para endossar estilos de vida prejudiciais. Um amigo, para preservar a amizade, pode relevar o ligeiro abuso de álcool, o sedentarismo ocasional, o consumo de gorduras. Um médico, jamais. Não é fácil, mas, em nome da nossa saúde, temos de aprender a separar os dois personagens dentro do jaleco branco.
Não é o que acontece com frequência, pelo que posso observar. Em geral, o paciente tenta se aproveitar da situação criada pela amizade. Ele pode, por exemplo, sugerir exceções em tratamentos que exigem maiores sacrifícios, com a desculpa de que o profissional o conhece e sabe que ele vai se cuidar. Ora, obedecer ao médico é respeitar o amigo que ele também é.
“Para o dramaturgo Tchékhov, se a literatura era sua amante, a medicina era sua legítima esposa”
Para esses profissionais, o exercício da medicina é sagrado, a vocação fala mais alto e se sobrepõe a outras camadas da vida. Eles adoram a profissão, mesmo se desempenham outros papéis. Tchékhov, por exemplo, autor da celebrada peça de teatro A Gaivota, era médico e costumava dizer que, embora a literatura fosse sua amante, a medicina era sua legítima esposa. Assim se comportam os bons médicos, e por isso devemos evitar aquela insubordinação cordial.
A medicina não é uma ciência exata. Ela é demasiadamente humana. É comum, portanto, haver divergências entre dois ou mais excelentes profissionais. Nesse caso, como nós, leigos, devemos reagir, se um dos profissionais for nosso amigo?
Simples: nessa circunstância, deve prevalecer o parecer profissional. O próprio médico, o amigo em quem você confia, provavelmente vai sugerir a busca de uma segunda opinião. Sim, pois não se trata de desconfiança. Na verdade, é com muita tranquilidade que os médicos encaram opiniões de colegas especialistas.
Por tudo isso, se você, como eu, for amigo do seu médico, aproveite o dia dele para celebrar a cura — e a vida. Afinal, como bem sentenciou Guimarães Rosa, “qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”.
Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2024, edição nº 2915