É um fogo que arde sem se ver. Tomo emprestada a expressão de Camões, mas não é do amor que quero falar. É da pimenta. Pensei nela ao ver, na semana passada, que o Guinness anunciou a nova campeã da ardência.
A Pepper X, como foi batizada, é criação do mesmo agricultor americano, Ed Currie, que desenvolveu a recordista anterior, a Carolina Reaper. A caçula é 1 milhão de pontos mais endiabrada que sua antecessora, na escala Scoville, que mede ardor. Tem 2,69 milhões – uma malagueta varia de 50 a 100 mil pontos.
Mas para que tanto fogo? É que, de novo como no famoso soneto português, o tempero, como o sentimento cantado em seus versos, causa um contentamento descontente. A gente gosta, mas reclama. Ou reclama, mas gosta.
Seu emprego na cozinha é antigo. Nativa das Américas, já era cultivada e utilizada quando os europeus nem sonhavam que, deste lado do oceano, havia terras por explorar. Os indígenas valorizavam não só o sabor dos frutos, que secavam ao sol e moíam, mas suas características ornamentais e propriedades medicinais.
Como tantos outros alimentos, as pimentas foram parar na Europa após a chegada de Colombo. Naquela época, o grande aditivo das carnes era o sal, usado para conservá-las. Então foram muito bem-vindos os novos sabores que as diferentes pimentas davam – só no México há 64 tipos nativos, dos quais descendem 200 variedades.
Foi naquele momento de forte intercâmbio comercial que ela chegou a outras partes do mundo. Hoje não se concebe a culinária da Índia e do Sudeste Asiático sem seu ardor.
Ela se espalhou também no imaginário. Diz-se da pessoa espevitada que é “uma pimenta”. Se alguém faz pouco de um problema alheio, pode ouvir de volta que “pimenta nos olhos dos outros é refresco”. Quando se quer dar mais calor a um relacionamento, fala-se em “apimentar a relação”. E por aí vai: se seu ardor é evocado tanto para o bem quanto para o mal, é porque as metáforas espelham a controvérsia que ele inspira. É um desses sabores que se ama ou se odeia.
O que o faz tão particular é uma substância que se chama capsaicina. Quando comemos pimenta, ela faz os nervos enviarem sinais de dor e calor ao cérebro. O tal fogo invisível começa na língua. Diferente do que acontece com outra planta ardida, o wasabi, cuja queimação se dá principalmente no nariz, o ardor da pimenta é prolongado. Por isso, é muito comum que o último bocado de um prato “quente” seja o mais picante.
Mas, mesmo se o ardido dura na boca, a gente também se acostuma a ele. Com o tempo, a tolerância aumenta, e fica mais fácil encarar um prato muito temperado.
É que o composto da pimenta aos poucos acaba anulando as sensações de dor e calor. Aliás, devido a isso, é usado para pomadas analgésicas e anti-inflamatórias. Estudos dizem ainda que ela acelera o metabolismo, que diminui a pressão e até que pode ajudar o sistema imune. Os indígenas tinham razão.
Não quer dizer que, se você não aprecia, tem que colocá-la na dieta. Agora, se gosta do sabor, pode se valer também desses outros benefícios. Mas não é uma panaceia – e, como tudo, se consumida em excesso, pode irritar o estômago. Diferentemente do calor do amor, o da pimenta não é para todo mundo.