A espontaneidade infantil é bem conhecida. Toda família tem sua coleção de episódios de franqueza extrema que, se na hora causam embaraço, depois são recordados com risadas. Porém, se toleramos a falta de limites das crianças é por ela ser passageira. Com o tempo, nos moldamos às regras do bom convívio e adquirimos “filtro”. Sendo assim, como se explica que pessoas maduras percam o crivo e se entreguem à incontinência verbal por escolha, mesmo sendo conhecedoras das convenções sociais?
O termo “sincericídio”, dado ao ímpeto excessivo pela verdade, é eloquente: ele é um ataque de sinceridade mortal. Para os psicólogos, o sincericida é alguém que se crê injustiçado. Ele usa a honestidade como uma arma para cobrar, doa a quem doer, o que acha que o mundo lhe deve. Em diferentes medidas, acredito que raiva, ilusão de poder e vaidade são alguns dos sentimentos que fazem aflorar o “sincerão” em nós. Se, em jornais e conversas, a expressão aparece cada vez mais, é porque a atitude está em alta. Surge tanto em colocações pessoais acaloradas quanto em declarações públicas. Às vezes, é um lapso; em geral, é uma afirmação calculada para causar impressão.
Eu mesma não escondo ter tido momentos assim. Lembro, não exatamente com orgulho, da resposta atravessada que dei quando um chef me serviu um risoto cuja consistência mal mascarava o uso de creme de leite. Da mesma forma, denunciei doces que se diziam “zero” sem ser. Era o início de minha carreira. Dedicada e séria, exigia dos demais rigor igual ao meu. Nessas ocasiões, deixei claro que não seria enganada por quem escolhesse caminhos fáceis. Hoje, talvez eu evitasse alguns embates desnecessários.
“Do escritor francês André Maurois: ‘A sinceridade é de vidro, e a discrição, de diamante’ ”
Em toda parte, haverá quem se creia acima do bem e do mal, sentindo-se autorizado a proferir suas opiniões com segurança desbragada, mesmo quando elas não são solicitadas. Essa maneira de agir é imprudente. Porque, é importante lembrar, os sincericidas não são apenas soldados armados com uma “metralhadora cheia de mágoas”, como diz a famosa canção de Cazuza. Embora esses arroubos possam acertar muitos pelo caminho, também quem dispara pode ser atingido pelos efeitos de suas próprias palavras. Não à toa os sincericidas são às vezes chamados “camicases da verdade”. Como esses pilotos japoneses da Segunda Guerra, eles não só lançam sua bomba, mas se atiram com ela contra o alvo. Por falar demais, o sincericida pode perder um amigo, azedar um negócio e até ver sua reputação ser jogada na lama. Portanto, é bem comum que, depois da falta de medida, venha o arrependimento.
A honestidade é qualidade a defender. Ter apego aos seus valores, manter uma linha coerente entre o que pensamos, dizemos e fazemos é louvável. Mas ser sincericida não é ser sincero — é ser um tanto inconsequente. Porque mesmo ao conversarmos com aqueles em quem mais confiamos, nas situações mais privadas, podemos sempre escolher medir as palavras. E o que, então, é ser sincero? Para o escritor francês André Maurois, a sinceridade não está em dizer tudo o que se pensa, mas em não dizer nada contrário ao que se pensa. Ou, como ele resume em uma afirmação conhecida, com a qual me alinho: “A sinceridade é de vidro, e a discrição, de diamante”.
Publicado em VEJA de 21 de junho de 2024, edição nº 2898