Aisha, a linda pastora-alemã do meu filho, tem uma mania curiosa. Ela foi adestrada para, durante os passeios na rua, seguir o dono de perto, sem coleira. Obediente, cola nele sempre que chamada. Até aí, sem surpresas. O curioso é que ela segue a sombra dele. Tenta alcançá-la, abana-lhe o rabo, bate-lhe com as patas, procura lambê-la, como se a sombra fosse palpável e tivesse vida própria. Empolgada, parece uma criança descobrindo o mundo à sua volta, ainda impressionada com aquela grudenta e intrigante silhueta escura. É uma cena divertida, dessas que, filmadas, renderiam memes.
Com o tempo, Aisha aprendeu que ela e o meu filho não sairiam mais a sós pelo bairro nos dias ensolarados. Haveria sempre entre eles uma sombra. Aisha aceitou a imposição do destino e aprendeu a conviver com aquela mancha semovente. Por fim, suponho, a cachorra e a sombra se tornaram amigas.
Conto essa história porque acredito haver certa sabedoria instintiva na reação de Aisha. Afinal, todos estamos condenados a conviver com as sombras que nos cercam. Parece estranho? Calma, eu explico. Em psicologia, a sombra é quase um sinônimo para inconsciente — impulsos, medos, paixões. Tudo aquilo que não passa pela consciência compõe essa temerária sombra que acompanha cada um de nós. É a nossa porção irracional. Embora não possamos controlá-la, ela age o tempo inteiro sobre nossa vida, influenciando decisões, temperamento, relações pessoais e, é claro, nossa saúde.
“Não podemos simplesmente apertar um botão e desligar nossas compulsões”
Quer um exemplo? A obesidade está intimamente relacionada ao que se passa em nossa cabeça. Fatores como ansiedade e depressão podem acionar gatilhos psicológicos poderosos, que contribuem para o aumento do peso. O grande desafio costuma ser resistir ao impulso de comer — que não deve ser confundido com a fome. A alimentação desregrada não é resultado das necessidades do corpo, mas de desejos do inconsciente.
Para os que conseguiram emagrecer, em geral é difícil conviver com a possibilidade de retornar ao peso anterior, depois de se sentir bem e se reconhecer em um corpo diferente. Todos esses casos exigem uma mudança de mentalidade. É preciso entender que o risco crônico da obesidade, como uma sombra, estará sempre ao lado. Como não podemos simplesmente apertar um botão e desligar nossas compulsões, cabe decidir como lidar com elas.
A pior opção é tentar ignorá-las. O sábio chinês Chuang Tzu conta a parábola de um homem que, incomodado com a própria sombra, decidiu correr para despistá-la. Correu cada vez mais rápido até que, exausto, caiu morto. Tzu e Aisha ensinam, cada um à sua maneira, que é inútil procurar se livrar das sombras. O melhor é lançar luz sobre elas. Sem alguma dose de autoconhecimento é impossível sustentar a longo prazo uma boa qualidade de vida.
Que situações despertam em você aquela vontade incontrolável de comer? Está confortável com sua silhueta atual (seja ela qual for)? São perguntas que devemos sempre nos fazer. As sombras do nosso inconsciente são inimigas poderosas, mas não invencíveis. Com paciência, podemos transformar o lado obscuro da nossa personalidade em um lugar iluminado e, como Aisha, aprender a brincar com nossas sombras.
Publicado em VEJA de 2 de dezembro de 2020, edição nº 2715