Imagine você um prato que tivesse de tudo um pouco: carnes, carboidratos e legumes variados. Um prato que pudesse ser preparado com antecedência e que, com seus diferentes ingredientes coloridos, cortados e ordenados para ficarem visíveis, fizesse bonito.
Pois esse prato, que não se precisa imaginar já que ele existe há muito tempo, se viu recentemente não ao centro de mesas festivas, mas de inflamadas discussões. Isso porque foi qualificado como “o pior da culinária do Brasil”. É o tradicional cuscuz paulista.
A celeuma nasceu em um guia gastronômico digital escrito em inglês, chamado Taste Atlas, e não demorou a ganhar as páginas de veículos da imprensa e as redes sociais no Brasil. O site, que se define como uma enciclopédia de sabores e atlas internacional de pratos, tem sede na Europa. Mas, por causa do idioma, sobrou para os americanos, logo acusados de não saberem cozinhar nem comer e, assim, incapazes de avaliar preparos culinários requintados.
Essa confusão me fez rir, pois a proveniência do cuscuz também é um tanto incerta. O nome (do árabe “kuskusu”, que indica tanto o prato quanto a semolina que é sua base) e o preparo básico vêm do norte da África. Mas, a partir daí as variações são muitas.
A rota que o prato trilhou é a da expansão islâmica. Foi do Magreb para a Península Ibérica e, de lá, nas naus portuguesas, chegou às terras de além-mar. Aqui não havia trigo, mas, sim, milho. A primeira adaptação se deu aí, mas várias outras a seguiram. No Nordeste, ele é comum cozido no vapor e servido com leite ou leite de coco. No Rio de Janeiro, é um doce de tapioca, vendido na praia e em carrinhos de rua.
Só o paulista reivindica sua origem no nome. Sua base, como a do nordestino, é a farinha de milho, podendo levar ou não também a de mandioca, que vem mesclada a peixe (em geral sardinha) ou frango, tomate e outros legumes (pimentão é comum, mas também ervilha) e ovos cozidos. Pode levar também camarão. Tudo vai arrumado numa forma como a de bolo ou pudim, permitindo servi-lo em fatias.
Talvez a chave do orgulho ferido com a lista venha justamente de ele ser tão associado ao território, não só no nome, mas nas histórias que se contam sobre ele. Há quem diga que ele deriva dos farnéis dos tropeiros e bandeirantes que desbravaram o estado. Levados no lombo dos animais em sacos de tecido, a farinha e outros ingredientes teriam se misturado, daí surgindo a iguaria. Embora para muitos essa explicação não passe de folclore, funciona bem para justificar o lugar de afeto que ele tem para tanta gente.
Debates históricos à parte, aqui em casa o apreciamos pelo que é: um prato amigável, que pode ser adaptado a diferentes gostos e que, como o próprio Taste Atlas destaca, é bom para grandes reuniões. Nesta época do ano, é uma ótima pedida.
Queria terminar lembrando que, uns anos atrás, na época das Olimpíadas do Rio, jornalistas (de fato) americanos resolveram criticar, no “The New York Times”, o biscoito de polvilho. Também então houve indignação. Duvido que alguém pense nisso quando ouve o vendedor anunciar o “biscoito Globo, salgado e doce”. Da mesma forma, tenho certeza, o cuscuz continuará a ter seu lugar na mesa e no coração dos paulistas.