A volta do leite verdadeiro
Alimento reafirma seu lugar à mesa, nutrindo corpos, historias e debates.

Por boa parte do século 20, o leite de vaca foi associado à saúde, sendo visto como sinônimo de alimento básico, que não podia faltar. A própria língua nos dá provas, basta lembrar da expressão “trabalhar para garantir o leite das crianças”. Até que, em anos recentes, essa visão foi mudando, e tudo parecia indicar que ele estava condenado ao esquecimento.
Como as lancheiras metálicas ou o telefone fixo, o leite parecia ter se tornado um artigo de outro tempo em certos nichos de consumo. Foi perdendo espaço para opções vegetais, que se ampliaram e sofisticaram, conquistando os cardápios de cafés e o coração de quem buscava alternativas à gordura animal, à lactose ou simplesmente aos padrões industriais tradicionais.
Eis que, porém, ele volta à cena com força inesperada. Dados de 2024 mostram que, nos Estados Unidos, o consumo de leite integral cresceu mais de 3%. A porcentagem pode parecer pequena, mas não se registrava uma subida assim desde os anos 1970. Ela se torna mais significativa se pensarmos que a venda dos substitutos vegetais encolheu quase 6%. Mais que os números, importa o que eles indicam: o leite é hoje também um objeto de debate cultural.
Até para fazer frente aos incontáveis substitutos, o leite deixou de ser um só. Mundo afora, as prateleiras de supermercado apresentam versões variadas, desde as rotulagens mais comuns, como “orgânico” e “sem lactose” até outras menos conhecidas, como “ultrafiltrado” – para concentrar proteínas – ou as enriquecidas – em alguns países, se acha até com cafeína. Tantas são que o leite, aquele básico, passou a ser chamado “leite de verdade”. Vídeos mostram jovens provando-o como quem redescobre um rito ancestral.
O leite é, de fato, ancestral. Ele acompanha a humanidade desde que começamos a domesticar animais, cerca de 5.000 anos antes de Cristo. No começo fazia mal se ingerido cru, e a inventividade foi resolvendo o desafio de fazê-lo mais digerível, na forma de queijos e iogurtes.
A pureza que ele evocava fez com que fosse visto também como símbolo, associado à fertilidade e usado em oferendas no Egito e na Mesopotâmia, ou como remédio, na Grécia Antiga – Hipócrates, pai da medicina, receitava como tônico.
A Revolução Industrial e o crescimento das cidades fez com que o leite cru, vindo de um campo que ficava mais distante, se tornasse uma preocupação sanitária. Isso se resolveu com a pasteurização, no século 19. A partir daí, seu consumo foi estimulado como um hábito saudável até os anos 1970, quando começaram a surgir os primeiros questionamentos.
Faço esse breve histórico para colocar o vaivém em perspectiva. É claro que, como em todo movimento pendular, às vezes se cai em excessos de um lado ou de outro. Dentro dessa onda de revalorização, a defesa do leite cru ganhou ímpeto inusitado nos Estados Unidos. As autoridades de saúde não endossam a argumentação de que o leite sem pasteurizar seja “mais natural”. Ele é apenas mais perigoso.
Sou uma entusiasta dos laticínios magros, que trazem proteína e cálcio à dieta. De modo geral, as críticas feitas ao leite não justificam sua troca por alimentos menos completos. A indústria e o agronegócio são capazes de fazer frente às principais questões e levar o velho e bom “leite verdadeiro” de volta à mesa de todos.