O setor privado pode ser um aliado do Estado para acompanhar os avanços rápidos que a tecnologia promove. Afinal, etapas e requisitos legais tornam o processo como um todo menos ágil do que a urgência das necessidades do setor de saúde exige. Por toda parte, ainda mais em nossa era digital, vemos o quanto, a cada dia, novos equipamentos, novas soluções surgem, agilizam rotinas e ampliam a produtividade. Uma característica desse processo é: a iniciativa privada responde por uma parte considerável desse avanço. Na saúde, isso não é diferente – e no caso dos hemoderivados, ainda mais.
A PEC 10/2022, a chamada PEC do Plasma, faz modificação no artigo 199 da Constituição Federal – que, na redação dada em 1988, concentra nas mãos do Estado todo o processo de se lidar com o plasma (ligeiramente amarela e viscosa, é a parte líquida do sangue, componente de cerca de 55% do volume total). O que a PEC faz é permitir que se disponha sobre condições e requisitos para coletar e processar o plasma humano.
A polêmica em torno do assunto não vem por acaso. Dificilmente temas que lidam com saúde deixam de ocasionar debates apaixonados – e, justamente por isso, frequentemente permeado de informações incompletas ou enviesadas. Prevalecem críticas à possibilidade de que se crie mercados de plasma que tirem da população acesso a remédios essenciais.
Nem sempre é lembrado que o Brasil tem, por exemplo, uma grande população de pacientes com hemofilia. A quarta maior do mundo, na verdade: cerca de 13 mil pessoas, segundo dado da Federação Mundial de Hemofilia, lembrado recentemente – no dia 4 de outubro, que é o Dia do Hemofílico no Brasil. A hemofilia se caracteriza pela incapacidade coagulatória do sangue – o que eleva em muito o risco de hemorragias e sangramentos acabarem se tornando fatais.
E as pessoas com hemofilia são apenas um grupo de pacientes para quem hemoderivados são uma parte crucial da manutenção de sua saúde. Para essas pessoas, a necessidade de medicamentos específicos (não raro, de alto custo) não pode acompanhar o ritmo de estruturas estatais burocráticas e pesadas. E o Brasil não tem condições, no atual estado de seu parque fabril de hemoderivados, de atender todos os que precisam desses produtos.
Atribuir a responsabilidade de acompanhamento dessa incorporação tecnológica a uma estrutura pesada de Estado é um equívoco. A sociedade precisa de respostas céleres e o Estado não está equipado para isso. Por isso, abrir espaço à iniciativa privada se dá apenas na medida em que, com mais cientistas e técnicos envolvidos em pesquisa e na produção, a oferta de hemoderivados poderia acompanhar a urgência que seus usuários têm.
Uma crítica à PEC é a de que surgiria, assim, um mercado que reduziria a oferta dos produtos à base de plasma – o que é falso. Ampliando a produção, preços poderiam diminuir; empregos qualificados seriam gerados; maior seria a arrecadação de impostos; e mais ainda avançaria a tecnologia na área. O efeito seria justamente o oposto: mais pessoas, não menos, teriam acesso.
A Hemobrás, estatal criada em 2004 para levar o Brasil à autossuficiência na produção de hemoderivados, ainda não está com seu parque fabril concluído. O tempo faz parte das prerrogativas de qualidade nos tratamentos de saúde: quem faz uso de hemoderivados precisa de respostas imediatas.
Não haverá retrocessos na questão do tratamento que se dá ao plasma humano no Brasil. Regulamentações virão para tornar sempre mais claro o modo como se vai lidar com coleta e processamento do líquido, e de como ele será empregado. Trata-se apenas de abreviar a espera por medicamentos dos quais os pacientes não podem prescindir.