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Claudio Lottenberg

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Mestre e doutor em Oftalmologia pela Escola Paulista de Medicina (Unifesp), é presidente institucional do Instituto Coalizão Saúde e do conselho do Hospital Albert Einstein
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IA e ética: hora da discussão séria

Mais do que temores de futuros distópicos, questões éticas e de ordem prática estão na pauta. E precisamos buscar respostas

Por Claudio L. Lottenberg
Atualizado em 8 Maio 2024, 16h26 - Publicado em 31 jan 2024, 17h07
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  • Os avanços em IA (Inteligência Artificial) têm se sucedido em velocidade tão estonteante que não poderíamos ser culpados se, às vezes, nos pegássemos pensando que essa tecnologia é um “ser” com consciência e vontade próprias. Não é (ainda, pelo menos). Trata-se de uma ferramenta, feita para estar a serviço das pessoas. Mas ela vem sendo aplaudida e adotada quase imediatamente, a cada nova funcionalidade que é descoberta. Pode não ser uma sugestão muito popular, mas é preciso desacelerar um pouco. Porque há discussões e considerações de ordem ética, moral e legal que têm de ser feitas. E estas não combinam com açodamento e pressa.

    Já chegamos ao ponto de ver um chip implantado em tecido cerebral, com a expectativa de que em algum momento se poderá controlar dispositivos (computadores, smartphones e outros) a partir do pensamento. O feito vem da startup de Elon Musk, a Neuralink. Reportagem do The Wall Street Journal diz que a ambição de Musk é que os chips cerebrais façam com que “a raça humana possa acompanhar a inteligência artificial” e possam “mitigar os riscos de longo prazo” que ela representa.

    Por mais distante que esteja ainda um tal uso (feito com eficiência e capaz de ser adotado em massa), o tema já saiu por completo do terreno da ficção. Já não é mais questão de “se um dia vier a acontecer”. O momento é de pensar em preparativos concretos, implementáveis, para sua chegada.

    De uma certa forma, a humanidade veio se preparando ao longo de muito tempo para a IA. O professor Mark Coeckelbergh, da Universidade de Viena, menciona, por exemplo, o “complexo de Frankenstein” – e o medo que causa a ideia de uma forma de vida artificial saindo do controle (a expressão “inteligência artificial”, claro, não estava em uso – mas dessa ideia, em si mesma derivada de algumas mitologias e religiões, viemos a pensar nos robôs). No cinema, nem uma lista breve de exemplos de inteligências artificiais “rebeldes” caberia aqui.

    Pois eis que estamos no momento da história em que é preciso fazer perguntas do tipo: Qual será o estatuto legal de uma IA? Em um acidente de trânsito com um veículo guiado por IA, quem é responsável? Chegará o ponto de humanos e máquinas se tornarem indistinguíveis? Se chegar, que papel terão os humanos? Haverá uma superinteligência artificial (um aprimoramento recursivo, em que a IA projetaria os próprios avanços de forma ilimitada), como temem alguns dos mais pessimistas, e que por fim escravizaria a humanidade? E como fica a questão da desigualdade? No Brasil, algumas regiões têm amplo acesso, enquanto outras sequer tem energia elétrica. O SUS terá sistemas eficientes de IA?

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    São questões do terreno da ética. Longe do estereótipo de serem “filosóficas demais” (uma discussão abstrata, da qual só iniciados poderiam participar), tais questões são, sim, filosóficas – mas estão surgindo em tempo real por toda parte, e requerem nossa atenção. Não (ou não apenas) para conversas amenas, como se não dissessem respeito a nós e a nosso entorno. Elas precisam ser trazidas a público, para que a discussão ocupe o maior espaço possível.

    E, mais do que temores fundados em mitos e interpretações catastrofistas, é preciso pensar em respostas e posicionamentos para as questões práticas que o atual estágio da IA já coloca. A OMS (Organização Mundial da Saúde) publicou recentemente um documento em que sugere seis princípios que podem orientar políticas e práticas de governos, desenvolvedores e fornecedores que fazem uso da IA.

    Os princípios são: proteger a autonomia; promover bem-estar, segurança e interesse público; garantir transparência; fomentar responsabilidade e prestação de contas; garantir inclusão e equidade; e promover a IA responsiva e sustentável. Eis uma base bastante consistente em que fundamentar debates e políticas públicas. E uma base legítima, vinda de um órgão global que deu prova de seu valor na recente pandemia de covid-19.

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    Mesmo onde já existem regulamentações, tais princípios certamente servem de guia para orientar os trabalhos de órgãos de governo e de Justiça do mundo todo. Relatório recente da ONU (Organização das Nações Unidas) publicado em 2023 aponta que, mesmo que já existam no mundo todo diversos conjuntos de regras e legislações, elaborados seja pelo setor privado, seja pela sociedade civil, seja ainda por órgãos multilaterais (como o da própria OMS), falta um alinhamento global de implementação – pela razão mesma de serem regras e legislações próprias de cada país.

    A União Europeia, por exemplo, declarou que quer regulamentar a IA para “garantir melhores condições para o desenvolvimento e utilização desta tecnologia inovadora”, em vista dos benefícios que dela podem derivar – como “melhores cuidados de saúde, transportes mais seguros e limpos, fábricas mais eficientes e energia mais barata e sustentável”. O chamado “AI Act” foi proposto pelo Parlamento Europeu em 2021 e propõe que as aplicações da IA serão analisadas quanto ao risco que põem para os usuários e a regulamentação será maior ou menor conforme esse risco.

    Inaceitáveis, para o Parlamento Europeu, são, por exemplo, a “manipulação cognitivo-comportamental” de vulneráveis (brinquedos ativados por voz que incentivem comportamentos perigosos); o “ranqueamento” de pessoas com base em condição socioeconômica ou características pessoais; e identificação biométrica remota e em tempo real (reconhecimento facial). Algumas dessas restrições não representam problemas para outras regiões do mundo. Só aí já existe farto material para a discussão da ética da IA.

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    No Brasil, temos o Marco Civil da Internet, de 2014, que, mais que regras estritas e minuciosas, tem na base princípios, como neutralidade, liberdade de expressão e privacidade. Fica espaço para considerar casos que exijam atenção específica. Até abril, o Senado deve votar o projeto de lei 2.338/2023, que cria o marco legal para a IA (a partir do trabalho de uma comissão de juristas que analisou ainda outras propostas e as leis existentes em outros países). A própria natureza da IA exigirá revisões frequentes – porque usos de que nem suspeita serem possíveis hoje podem estar em pleno uso em algum futuro próximo.

    Fundamental é entender que artes e mitologias não mais “monopolizam” a ideia de IA. Esta se transformou em realidade e impõe questões antigas reformuladas e outras inéditas. Só a ciência da computação não basta para encontrar as respostas. Ética, filosofia, direito, política, gestão pública e outras são áreas em que muito do que se fará na IA precisa ser debatido.

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