Na semana passada, a Folha de São Paulo publicou uma série de reportagens sobre compras de altas quantidades de medicamentos à base de cannabis. De acordo com o jornal, a Secretaria de Saúde de São Paulo foi obrigada pela Justiça a desembolsar 230 mil reais para comprar 480 frascos para um único paciente. Ainda segundo a Folha, não se trata de um caso isolado: em outro processo, a conta ficou em mais de 160 mil reais e, em um terceiro, R$ 118 mil. As empresas responsáveis pela importação desses produtos informam que não interferem nas quantidades prescritas pelos médicos.
Os fatos publicados pelo jornal escancaram uma situação incômoda para o setor da cannabis legal no Brasil. A chamada judicialização das terapias com canabinoides, com decisões favoráveis aos pacientes, é tema recorrente nos círculos mais informados do mercado. Em diversas oportunidades, tanto empresários quanto investidores com quem conversei se mostraram preocupados com o excesso de sentenças judiciais que obrigam o Poder Público a comprar medicamentos à base de cannabis. Algumas empresas chegavam até a oferecer “consultoria jurídica” para pacientes que não pudessem arcar com os custos dos tratamentos. Ou seja, além de indicar médicos prescritores – essa uma prática disseminada – os importadores encaminhavam as pessoas a advogados habituados a pedir na Justiça o fornecimento dos remédios por meio do SUS. Para muitos a prática é, no mínimo, questionável. Para outros, menos diplomáticos, trata-se de conduta antiética mesmo. As compras de altas doses reveladas pela Folha adicionam gravidade ao quadro.
Acertadamente inscrito na Constituição, o direito universal à saúde tem sido usado para determinar que o Estado arque com os custos de diferentes remédios, tratamentos e terapias, não apenas no segmento da cannabis medicinal. Regularmente a imprensa noticia casos assim. Para o mercado medicinal da erva, no entanto, esse cenário acaba prejudicando a consolidação da própria regulamentação do setor. A impressão que fica é a de que só é possível avançar em meio às brechas na lei e que o Judiciário é o caminho preferencial para esse debate. Não é, ou pelo menos não deveria ser. Há quem defenda essa via justamente por conta da omissão do Executivo e do Legislativo, o que é compreensível dada a urgência dos quadros que requerem intervenção médica imediata. No longo prazo, contudo, o legado é de insegurança para os pacientes dada a fragilidade do arranjo, que pode mudar ao sabor das consciências dos nossos magistrados.
Apesar de tudo isso, é possível imaginar que a situação deve perdurar até que o Governo Federal e o Congresso decidam se debruçar sobre o assunto de forma imparcial em uma discussão amparada por fatos, dados e evidências científicas. No Brasil, além do estigma da planta e do preconceito contra os seus diversos usos, temos também que nos preocupar com certos “jeitinhos” que beneficiam uma minoria em detrimento do conjunto da sociedade. Se o SUS deve fornecer cannabis medicinal de forma gratuita à população, que isso seja feito de forma universal e não apenas para quem tem acesso a advogados pagos sabe-se lá por quem. Precisamos de mais previsibilidade e transparência na regulamentação da erva no Brasil. Somente assim vamos atrair novos investimentos e promover os ganhos de escala fundamentais para a queda dos preços. A obrigação do Poder Público de garantir a saúde dos cidadãos não pode servir de subterfúgio para aumentar o lucro de algumas empresas. Na medida em que o Estado reconhece o potencial terapêutico da cannabis, o mínimo que deveria fazer é providenciar uma licitação ou tomada pública de preços para adquirir esses produtos a custos mais justos para quem paga a conta: nós, os contribuintes.