Quase 50% dos planos de governo municipais abordam crianças e adolescentes
Cerca de 6 mil planos de governo municipais abordam explicitamente esse público, mas só 3,3% deles associam crianças e adolescentes com a palavra direitos
Muita gente não sabe, mas desde 2009 todas as pessoas que desejam se candidatar aos cargos de prefeito, governador e presidente são obrigados por lei a registrar suas propostas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Nos últimos anos, esses documentos têm sido utilizados em pesquisas pelo projeto Vota Aí!, uma parceria entre duas instituições públicas, o Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e o Doxa, Laboratório de Estudos de Comunicação Política e Opinião Pública do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ).
Utilizando a inteligência artificial, a plataforma disponibiliza diferentes ferramentas para consulta às propostas de governo. É possível ler um programa na íntegra, comparar dois programas – de partidos, municípios ou anos diferentes –, verificar se palavras específicas foram mencionadas e como elas aparecem nesses documentos.
Curiosa para saber se crianças e adolescentes aparecem nos planos de governo com a mesma intensidade que eles são expostos nas campanhas políticas, solicitei ao Vota Aí! um levantamento exclusivo para a coluna sobre menções a crianças e/ou adolescentes nos 14.595 planos de governo de todos os municípios brasileiros. A frequência com que esse público apareceu nos planos de governo surpreendeu a cientista política responsável pelo levantamento.
“Quando a gente olha a questão das crianças e dos adolescentes sem incluir a palavra direitos é um tema bastante abordado”, avalia a cientista política Nara Salles, pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e uma das coordenadoras do projeto, em entrevista à coluna. Segundo ela, o termo aparece em quase a metade (44,6%) dos planos de governo (6.505).
Por outro lado, ao pesquisar palavras-chave como “direitos de crianças e adolescentes”, “direitos das crianças e adolescentes” e “direitos das crianças e dos adolescentes” a menção cai para 3,3% (485), aponta.
Para Salles, o tema se tornou muito relevante nesta eleição, mas a tendência é de falar de coisas mais gerais e não de direitos de forma explícita.
“A Agenda 227 constatou que, durante todo o debate eleitoral deste ano, os direitos das crianças e dos adolescentes não foram discutidos com a prioridade necessária para os próximos mandatos municipais”, diz Miriam Pragita, diretora executiva da OSC Andi Comunicação e Direitos e membro da equipe executiva da Agenda 227, movimento apartidário que reúne 477 organizações da sociedade civil de todas as regiões brasileiras. “Embora o levantamento aponte para um percentual relevante de menções gerais à infância e à adolescência nos planos de governo dos municípios, nota-se a preocupante ausência de centralidade para a garantia dos direitos dessas populações”, alerta.
O movimento defende o compromisso integral dos prefeitos eleitos para que a prioridade absoluta de meninas e meninos brasileiros seja um princípio norteador não apenas de seus planos de governo, mas também de todo o decorrer de suas gestões, com a implementação de políticas públicas concretas com foco na infância e na adolescência.
ABORTO É POUCO MENCIONADO NOS PLANOS DE GOVERNO
Outros temas relevantes para o debate político, como aborto, aparecem de forma bem menos frequente nos planos de governo. “Como a questão do aborto foi discutida de forma intensa nos últimos meses, achei que seria mais prevalente”, reconhece a cientista política.
Nos Estados Unidos, esse tem sido um dos temas centrais da campanha presidencial. Levantamento feito pelo Vota Aí! para a BBC News Brasil apontou que, no Brasil, houve, no entanto, apenas 61 menções ao tema nesse universo de quase 15 mil planos de governo (0,4% do total). “Como é um tema sensível, os candidatos preferem falar de outras coisas, relacionadas aos problemas das cidades, em vez de focar num assunto delicado, em que podem perder voto”, diz ela.
“Se na área da saúde as pesquisas possibilitam desenvolver vacinas e novos medicamentos, acreditamos que na ciência política elas devem oferecer ferramentas e conhecimentos que possam contribuir para que a sociedade seja mais democrática”, diz o texto de apresentação do projeto, que pode ser acessado gratuitamente por qualquer pessoa.
Projetos como o Vota Aí! são um antídoto contra as fake news e falsas promessas. Com debates cada vez mais rasos, a plataforma deve ser muito útil nessa e nas próximas eleições não apenas para cientistas políticos e pesquisadores, mas para qualquer eleitor que esteja interessado em se aprofundar e comparar as propostas dos candidatos e candidatas antes de decidir o seu voto.
* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos.