Realizada há 20 anos pelo Insper, a pesquisa de vitimização na cidade de São Paulo oferece um retrato preciso e inédito da violência nos nossos tempos. A cada cinco anos, pesquisadores investigam a ocorrência de situações como roubos, furtos, estelionato e agressões. A pesquisa é feita com uma amostra representativa da população, por meio de entrevistas em domicílios. Em 2023, a mais recente delas, foram realizadas 3 mil entrevistas.
A imagem que se obtém com esse tipo de pesquisa é muito mais fiel à realidade do que quando são utilizadas estatísticas oficiais de ocorrências policiais, frequentemente subnotificadas. Posto isso, o retrato que emerge dessa longa e robusta pesquisa é, no mínimo, preocupante.
Os casos de estelionato atingiram o maior nível da série: 30% das pessoas entrevistadas reportaram terem sido vítimas de golpes desse tipo. Estelionatos envolvendo notas de dinheiro falsas se reduziram quase que continuamente ao longo do tempo: de 15,4%, em 2003, para 6,3%, em 2018 e 2023, acompanhados pelos estelionatos que envolviam cheques que não poderiam ser descontados.
NOVAS MODALIDADES DE ESTELIONATO
Outras modalidades de estelionato, no entanto, tiveram alta significativa nesse período. Fraudes de cartão de crédito passaram de 1,4% (2003) para 9,3% (2023). As ocorrências com clonagem de celular quase triplicaram entre 2018 e 2023, saltando de 1,3% para 3,4%. Já problemas com sites ou aplicativos de compras alcançaram 7,8% da população da cidade de São Paulo, em 2023, ante 1,6%, em 2013. Fraudes bancárias na internet e roubo de dados pessoais também aumentaram significativamente desde que começaram a ser contabilizados. As fraudes passaram de 0,5%, em 2013, para 1,7%, em 2023. Já o roubo de dados pessoais foi de 1,3% para 3%, entre 2018 e 2023.
“No começo da pesquisa, em 2003, havia uma incidência muito maior de roubo de automóveis e de seus componentes. Agora, é muito furto de celular e roubo na internet”, comenta Naercio Menezes Filho, membro da Academia Brasileira de Ciências e professor titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper, responsável pela pesquisa, em entrevista a esta coluna.
Em geral, a porcentagem de pessoas que são roubadas ou furtadas não se alterou substancialmente nos últimos 20 anos, o que, para o pesquisador, é “impressionante”. “Não esperávamos isso. Apesar de você ter muitas mudanças demográficas, na distribuição da renda, na pobreza, nas políticas públicas e mesmo na polícia, a taxa ficou mais ou menos constante [cerca de 8% para roubo e 13% para furto]”, diz ele.
As agressões on-line, por sua vez, cresceram nos últimos 5 anos, passando de 4,7%, em 2018, para 5,4%, em 2023. O crescimento ocorreu em todos os níveis socioeconômicos, mas afetou principalmente os jovens, que relataram um maior nível de ocorrências, e pessoas com maior nível de escolaridade.
AGRESSÕES POR MOTIVOS POLÍTICOS OU IDEOLÓGICOS E DISCRIMINAÇÃO RACIAL OU POR MOTIVOS RELIGIOSOS
Outro dado que chama a atenção é o alto percentual de agressões físicas ou verbais por motivo políticos ou ideológicos: quase 6% da população relatou problemas desse tipo. Um dado novo que em tempos de polarização política apareceu na última pesquisa.
As agressões verbais por motivos políticos ou ideológicos superaram as agressões físicas. Homens tendem a ser as principais vítimas e, em geral, esse tipo de violência é mais frequente num público mais jovem e escolarizado. “É o pessoal que participa mais”, justifica Naercio.
A edição de 2023 da pesquisa de vitimização implementou ainda perguntas sobre discriminação. Cerca de 6% dos entrevistados sofreram algum tipo de discriminação no último ano. Surpreendentemente, motivos religiosos apareceram como uma das principais causas para a discriminação (21,4%), perdendo apenas para a discriminação racial (36,3%). A taxa de vitimização por discriminação cresce quanto mais jovem a pessoa e quanto maior o nível de instrução.
Em relação ao assédio sexual, a boa notícia é que a taxa caiu em relação a 2018, passando de 9,5% para 7,8%. O percentual foi menor tanto para homens (4,9% para 4,8%) quanto para mulheres (13,5% para 10,4%), mas ainda assim é alto.
O que fica evidente pelos dados é que questões como discriminação racial, assédio sexual e agressões por motivos políticos ou ideológicos ganharam, sim, mais visibilidade nos últimos anos, um fenômeno devidamente quantificado pela pesquisa.
Segundo o pesquisador, um lado ainda mais triste de tudo isso é a queda contínua do grau de confiança em pessoas da sua vizinhança, também medido pelo estudo. “Ninguém tem confiança nos outros. Nem no seu vizinho”, diz ele.
Entre 2013 e 2023, a taxa de confiança nos vizinhos caiu ininterruptamente em todas as modalidades de perguntas. Em 2003, 94% das pessoas emprestariam uma xícara de açúcar a um vizinho. Em 2023, o percentual baixou para 89,7%. Quando o assunto é emprestar dinheiro (até 70 reais) a um vizinho, a taxa é ainda mais baixa: 44% (2023) ante 56,8% (2003). Perguntados se pediriam para seu vizinho tomar conta do seu filho, apenas 24,8% responderam que sim (ante 28,9% em 2003).
Lamentavelmente, o acirramento da polarização política, o racismo estrutural e a violência nas grandes cidades deixam um lastro de prejuízos visíveis hoje nos números e no comportamento das pessoas. Um retrato difícil de encarar e que é escancarado pela pesquisa.
* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos.