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Vidas ao léu

A flutuante população do edifício Wilton Paes de Almeida integra uma massa de migrantes que continua migrante na própria cidade

Por Roberto Pompeu de Toledo
Atualizado em 30 jul 2020, 20h28 - Publicado em 11 Maio 2018, 13h41

Roberto Pompeu de Toledo (publicado na edição impressa de VEJA)

Ricardo, ou “Tatuagem”, é o personagem que ficará como emblema do incêndio e desabamento do edifício Wilton Paes de Almeda, no largo do Paissandu, centro de São Paulo. “Tatuagem”, assim chamado porque em seus braços mal se via pele, é o rapaz de 25 a 30 anos que, pendurado no para-raios do 15º andar do edifício, e já amarrado a uma corda, estava a ponto de ser salvo pelos bombeiros quando sobreveio o último ato da catástrofe. Uma cascata de fogo cobriu o edifício, arrebatou andar por andar, arrastou tudo o que tinha dentro ou pendurado fora ─ ele inclusive ─ e não sobraram senão ruínas. A Tatuagem coube o destino de entrar em cena e sumir em seguida. A imagem de sua desdita, mostrada mil vezes na TV, nas telas do celular ou do computador, ficará como seu momento único de protagonismo neste mundo.

Dele só se conhecem as migalhas colhidas por repórteres e cinegrafistas entre os que o conheceram. Morava no 9º andar, segundo o primo que, chorando, buscava notícias. Vivia de descarrregar mercadorias na rua 25 de Março, ali perto. Percorria as ruas do centro de patins. Às vezes emprestava os patins a uma criança, e cuidava de amarra-los bem aos pés delas. Emerge um perfil afável e prestativo. Deflagrado o incêndio, dedicou-se a ajudar as pessoas a evacuar o prédio. Subiu e desceu andares repetidas vezes. Orientava os idosos. Se tivesse saído logo, estaria ainda vivo ─ e livre de qualquer curiosidade em se lhe traçar o perfil. Morreu como herói.

O incêndio e desabamento do edifício do largo do Paissandu escancarou o que se passava ali dentro. Trezentos e setenta e duas pessoas registradas como moradores. Espaços concebidos para uso comercial divididos com tabiques para separar os inquilinos. Instalações elétricas improvisadas, abastecidas por um “gato” puxado de um semáforo, a fiação passando por fora do prédio. Aluguel variando de 100 a 400 reais cobrados dos moradores pela organização que coordenava a ocupação, Luta por Moradia Digna. Escancarou-se a existência de organizações oportunistas entre as que militam pelos sem-teto.

Um pouco de história. Nas origens de São Paulo, o hoje Largo do Paissandu era o “campo do Zuniga (ou Zunega)”, nome do proprietário da área. O local também era conhecido como “tanque do Zuniga (Zunega)”, por causa da mina de água ali existente, uma das fontes de abastecimento da povoação. Outro nome era “Alagoas”, fácil de presumir que por causa dos alagamentos causados pelo tanque. O que séculos atrás foi área encharcada, na semana passada virou festa do fogo. O nome Paissandu, numa época em que a urbanização já chegava à região, vem da cidade uruguaia tomada pelos brasileiros nos primórdios da guerra do Paraguai.

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Outro pouco de história. A iniciativa de levantar o edifício Wilton Paes de Almeida, uma torre de vidro desenhada pelo arquiteto francês Roger Zmekhol, foi do empresário Sebastião Paes de Almeida, à época um dos maiores do país, além de titular de cargos públicos como presidente do Banco do Brasil, ministro da Fazenda (governo Juscelino Kubitschek) e deputado federal. No edifício, inaugurado em 1968, e a que deu o nome do irmão mais velho, instalou a sede da principal de suas empresas, a Companhia de Vidros do Brasil (CVB). Já próspera, a empresa conhecera impulso ainda maior à época da construção de Brasília. A carreira pública de Paes de Almeida, considerado “inimigo da Revolução”, encerrou-se no regime militar. Os inimigos da UDN o acusavam de corrupção e o identificavam a outro Sebastião, chefe de famoso assalto a um trem pagador. A carreira empresarial entrou em declínio e, em 1980, as dívidas do grupo levaram à tomada do edifício pelo governo federal. O derretimento do prédio é uma nota de pé de página à sua derrocada.

A flutuante população do edifício Wilton Paes de Almeida integra uma massa de migrantes que, na maioria vinda de outro país ou outra cidade, continua migrante na própria cidade, de abrigo em abrigo, ocupação em ocupação, favor em favor. Vive-se ao léu, num êxodo permanente. Um quarto dos moradores era de estrangeiros ─ angolanos, congoleses, peruanos. A menina Gabrielle Victoria, de cinco anos, que chegara com a mãe do Recife havia três dias, resumiu com precisão o novo colapso em sua pequena vida, no Jornal Nacional: “Maínha chorando, o fogo, todas as casas, queimou”. O desabamento do prédio do largo do Paissandu lançou o holofote a um pedaço do Brasil real que pede resposta urgente.

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