Valentina de Botas: um impeachment fortalece a democracia e é tão legítimo para ela quanto uma eleição democrática
VALENTINA DE BOTAS O sotaque que fala ao meu coração, o zelo natural e eficaz com o idioma, a honestidade dos propósitos e dos meios, com tudo isso, para mim que sou presa quase indefesa da forma, Carlos Ayres Britto rendeu um dos mais agradáveis Roda Viva. Mas “quase” também é mais um detalhe, e […]
VALENTINA DE BOTAS
O sotaque que fala ao meu coração, o zelo natural e eficaz com o idioma, a honestidade dos propósitos e dos meios, com tudo isso, para mim que sou presa quase indefesa da forma, Carlos Ayres Britto rendeu um dos mais agradáveis Roda Viva. Mas “quase” também é mais um detalhe, e o sentido estranho de algumas falas importantes se impõe à forma agradável. Tenho juízo e não pretendo ensinar a quem sabe tão mais do que eu, mas, definitivamente, ao contrário do que o jurista afirmou, a maioridade penal aos 18 anos não é uma cláusula pétrea da Constituição.
Que o afável Ayres Britto defenda à vontade que ela se dê só aos 18, mas sem a ficção como argumento. Talvez a paixão confessa dele pela Constituição explique o deslocamento que faz da maioridade penal tratada no artigo 228 para o das matérias pétreas encerradas em outro artigo, no 60. Quanto ao regimento da Câmara, não houve pedalada legislativa coisa nenhuma: o texto rejeitado na primeira votação foi o chamado substitutivo, e não o texto original, circunstância que obriga à votação deste subsequentemente, segundo a letra explícita do regimento da Câmara.
Eduardo Cunha, na verdade, procedeu justamente ao que o regimento o obriga, se não o fizesse é que o presidente da Câmara seria um “déspota esclarecido ou sem esclarecimento” como se confundiu um dos entrevistadores. Claro que leis e direito não são matérias exatas, ou bastaria registrar argumentos contrários e favoráveis a determinada causa num computador e ele calcularia o veredito. Nuances e matizes são férteis desordens inescapáveis e mesmo positivas para os seres humanos, esses seres inexatos, e tal, mas, sem querer parecer aquele “idiota da objetividade” do mestre Nelson Rodrigues, há que se preservar um núcleo objetivo em meio à inerente subjetividade.
Agora, a fala do simpático jurista que mais me incomodou, também porque engrossa um coro estúpido, com toda a vênia do ilustríssimo e sereníssimo entrevistado, é, para rechaçar a tese do impeachment, aludir ao fato de a presidente ter sido eleita democraticamente. Ora, um impeachment fortalece a democracia e é tão legítimo para ela quanto uma eleição democrática. Além disso, ele só pode ser aplicado mesmo a um governante eleito democraticamente uma vez que só as democracias o preveem, pois ditadores têm a mania de se presumirem eternos e de vetar qualquer dispositivo legal que os afaste do poder.
O resto é conversa sonsa, ainda que embalada por gente de bem. Essas discordâncias não diluam meu respeito ao entrevistado. Ao contrário, é por meio delas que respiram almas democratas, como é a de Ayres Britto que, na melhor fala em conteúdo e forma, liquidou a falsa controvérsia sobre a delação premiada: “é um instituto que saúdo, muito mais do que saúdo a mandioca, se você me permite”. A democracia permite.