Enquanto Marilena Chauí, a professora arcaica, a essa altura da vida já resoluta em viver uma velhice sem nem a sabedoria da dúvida, berrava na claque senil-stalinista, Roberto Freire tentava falar. A lição foi a de sempre: não há petismo grátis e o roubo maior da súcia incurável não é contra a nossa grana, mas contra a institucionalidade. Gente de bem tem dito que Roberto Freire deveria ter deixado pra lá em vez de responder às mentiras de Raduan Nassar travestidas de opinião e à falta de modos democráticos da autoritária claque infanto-senil, que se pensava num diretório acadêmico estudantil em 1968, durante a entrega do prêmio Camões de Literatura, em São Paulo. Foi assim – inflados de altivez, dignidade e tal – que os bons e o silêncio nobre deles perpetuaram a tenebrosa noite petista que se abateu sobre o país durante inacreditáveis 13 anos, depauperando também o debate público.
Basta, não, senhores? Chega uma hora que chega e esse silêncio altivo nos faz reféns, submetidos aos chantagistas morais da súcia intolerante que, alegando o direito à liberdade de expressão de Raduan para fazer xixi na sala diante das visitas, interditava o mesmo direito a Roberto Freire que teve de se impor às vaias. Contra a falta de modos éticos, tolerantes e civilizados, Roberto Freire teve a ousadia de lembrar à claque arcaica que um regime de exceção, como o laureado chamou o que vivemos, não premia adversários políticos. E o ministro da Cultura o fez sem recuar da dignidade e dos bons modos que lhe são peculiares. Bons modos democráticos e bons modos éticos só se fazem bons se houver coragem para tê-los. Sem ela, eles são apenas covardia com polidez. Freire é um esquerdista? É. Mas é um democrata, sem contradição nenhuma.
O bate-boca entre o ministro e o escritor humilhado pelo cidadão só surpreendeu pela atitude do primeiro, pois a militância de Raduan, como toda militância, é um estado permanente que ignora hora, lugar e a verdade. Na repercussão da coragem de Freire e para responder à sugestão de que Raduan devolva o prêmio de 320 mil reais cuja metade foi cedida pela nação permanentemente insultada de golpista, os adeptos do governo legal e tardiamente deposto lembraram a doação de uma fazenda que Raduan Nassar fez à UFSCAR – sem ressalvar que foi em regime de comodato, ou seja, a propriedade continua dele, ele cedeu o uso da área –, sugerindo que a generosidade é álibi para o esbulho à institucionalidade, esbulho este tão mais amplo e grave quanto aquele que a súcia perpetrou na nossa grana, mas talvez irreparável.
A questão não é de caridade, e sim de vergonha na cara cuja falta ficou evidente quando Raduan não renunciou ao que já não lhe era honroso receber. O autor do belo Lavoura Arcaica pense o que quiser, mas o protesto honroso seria não aparecer.
Houve quem buscasse uma história de Freire como conselheiro um órgão municipal quando José Serra era prefeito de São Paulo. E daí? Nada. Ou apenas a metamorfose da tergiversação espertalhona em argumento. É que os defensores dos governos petistas recuam ao Brasil colônia para justificar o injustificável. Vão fazendo uma arqueologia na biografia de quem lhes resiste ou torturam a história viva em tal cruenta dissecação até que ela confesse: são todos iguais.
Roberto provou que não somos e que a arqueologia vigarista não muda a topografia da desonra numa noite em que uma claque arcaica de intelectuais liberticidas, sob um gozo pobre, escarneceu do sofrimento dos brasileiros imposto pela súcia que ela defende.
De outro perfil ideológico, mas aparentemente da mesma linhagem de políticos sem medo, João Doria tem desafiado também com audaciosa retórica – dimensão sem a qual não se faz política – igrejinhas ideológicas do esquerdismo já tornado inconsciente de redações e mentes. OK, também eu preferiria que Doria não se fantasiasse de gari ou de usuário de transporte público, mas desconfio que tem coisa pior na nossa política.
Numa entrevista à CBN, há cerca de duas semanas, respondendo à insistência inconformada de Fabíola Cidral e Renata Lo Prete sobre o que dizem os especialistas quanto ao conceito de arte para classificar pichação e grafismo, Doria deliciou os paulistanos quando ousou dizer que não é intelectualmente honesto consultar apenas especialistas que confirmem o que a reportagem quer. “Não governo para especialistas, não fui eleito por especialistas”, ensinou. “Fui eleito pela população de São Paulo e governo para a população de São Paulo”.
Há quanto tempo o paulistano que tem uma bicicleta em vez de bike, que não mora no eixo Vila Madalena-Vila Madalena e, sei lá, não fez uma pós-graduação em cinema em Cuba nem sabe onde comer o mais autêntico ceviche peruano na capital se sentiu visível? Nada tenho contra essas pessoas e, ainda que eu não tenha estudado cinema nem saiba andar de bike, adoro ceviche. Só que isso é Brasil com filtro. Vivemos tempos, mostram Freire e Doria, em que a ousadia é enxergar o brasileiro e o Brasil sem filtros.