Trecho do texto publicado na edição de julho da Revista Piauí.
QUESTÃO DE IDENTIDADE
Só o amor salvará o último cine drive-in
Daniela Pinheiro
Primeiro, compra-se a entrada: 14 reais por uma inteira e outros 7 para a acompanhante. Depois, ouvem-se as instruções da bilheteira: “Se quiser lanche, deixe o farolete ligado no baixo. Se estiver em perigo, ligue o pisca-pisca. Se for embora no meio, não acenda o farol”. Os espectadores assentem e recebem uma folha xerocada, na qual se apresenta, de um lado, o cardápio de bebidas (garrafa de vinho tinto, 18 reais), petiscos (hot dog completo, c/ milho, queijo e batata palha, 4 reais) e ofertas de ocasião (promoção pipoca: 1 lata de refrigerante + 1 pipoca, 5 reais). Virando o lado, a confirmação de que se está no lugar certo: “O maior cinema ao ar livre do país!”
Dali a cinco minutos, começaria mais uma sessão do drive-in de Brasília, último remanescente brasileiro de um modo de ir ao cinema que já fez a alegria de gerações ─ as de então e as que viriam a nascer, pois muita gente não existiria não fosse uma sessãozinha romântica no desconforto do banco de trás. Com capacidade para 500 carros e localizado dentro da área do autódromo, no coração da capital federal, o drive-in de Brasília resiste ao tempo (mau ou bom), às salas de shopping e às privações impostas pelo bom-tom politicamente correto.
O drive-in é o éden dos gordinhos, que podem se espalhar sem culpa pelas poltronas do carro. É a solução para fumantes, que simplesmente abrem as janelas para baforar ao relento. É o sossego das velhinhas, especialistas em comentar cada cena do filme oitavas acima do que convém nas salas tradicionais. É a redenção dos despojados, que podem aparecer de pantufas e pijamas. É a Arcádia dos modernos aflitinhos, que podem se pendurar à vontade nos seus inúmeros celulares. E é, sobretudo, o ninho das urgências de todos os apaixonados ─ oficiais ou não. (Ainda não inventaram nada mais propício a uma discreta pulada de cerca, nem a preços tão honestos).
Numa quinta-feira de junho, assistia-se a Chico Xavier no telão de concreto de 312 metros quadrados. Imagem nos trinques, graças a um equipamento que não faria feio em nenhum lugar do mundo. Quanto ao som, o progresso decerto fez cair o queixo de quem esperava aqueles alto-falantes abafados que, no passado, eram presos ao vidro do automóvel. Nada disso, senhores, vejam só: o antigo sistema foi substituído pela sintonia fina. Os interessados no que Chico Xavier tinha a dizer sobre este e o outro mundo precisavam apenas ajustar o dial na frequência modulada 88,7.
A projeção começou exatamente às 20 horas, com uma plateia composta por quatro veículos estacionados no mínimo a 100 metros um do outro (não por determinação da bilheteira). Num carro vermelho, um casal mantinha as janelas abertas. Fumavam, ouviam música de discoteca em alto e bom som e aproveitavam para se conhecer melhor: “Mas você nunca foi para Pirenópolis? Não acredito!”, espantava-se, compreensivelmente, a mulher. Mais longe, via-se um táxi branco. Ao volante, um senhor na casa dos 60 anos; do lado, um rapaz na faixa dos 30.
Em outro canto, um utilitário prateado ligou o farolete. O casal cinquentão estava com fome. Passados uns minutos, surgiu no escuro a garçonete, que também acumula as funções de bilheteira, projecionista e cozinheira. O quarto carro estacionara tão no além, que dava vontade de apostar dez promoções de pipoca + refrigerante: seus ocupantes não estavam enxergando uma letra dos créditos de abertura. Tinham mais o que fazer.
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