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Augusto Nunes Por Coluna Com palavras e imagens, esta página tenta apressar a chegada do futuro que o Brasil espera deitado em berço esplêndido. E lembrar aos sem-memória o que não pode ser esquecido. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.
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Sergio Moro: Busto, estátua e pessoa

Por onde quer que ia ou vá, era e é aplaudido, como demonstrado recentemente num estádio de futebol, ambiente em que se vaia até minuto de silêncio

Por Deonísio da Silva
Atualizado em 17 jun 2019, 12h03 - Publicado em 16 jun 2019, 12h30
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    O ex-juiz federal e agora ministro da Justiça, Sérgio Moro, está sob ataque, e o tema vem a calhar para esta coluna por causa da oportunidade de pequena reflexão sobre o que nos disseram no berço e o que nos dizem hoje certas palavras.

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    Admirado por multidões mundo afora, não apenas no Brasil, por sua coragem de atacar um sistema politicamente organizado de corrupção, de complexas sutilezas, ínvios caminhos e desconcertantes labirintos, por onde circulava o dinheiro público, obtido de falcatruas e fraudes diversas, viu erguido para sua pessoa um busto e uma estátua imaginários.

    Por onde quer que ia ou vá, era e é aplaudido, como demonstrado recentemente num estádio de futebol, ambiente em que se vaia até minuto de silêncio, como observou o inesquecível Nelson Rodrigues, e onde todos podem ser xingados, sobretudo a mãe dos outros. Ali não reina nenhuma liturgia do cargo, ali não impera nada sagrado que não seja o time para o qual se torce.

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    Voltaremos ao contexto destas palavras-chaves e de outras de domínio conexo quando entendermos o que está acontecendo. Por ora, digamos que busto quer dizer fogueira, estátua é o que está de pé, e pessoa é máscara.

    Estas palavras receberam curiosas formações e deformações desde o berço greco-latino, que gerou uma multidão de vocábulos para as línguas neolatinas, algumas de significados muito peculiares no português, este dileto filho do latim, tido como a última flor desabrochada no terrum de Roma, o Lácio, à beira do mare nostrum plantado.

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    Para a maioria de falantes e escreventes do português, busto pode ter a ver imediatamente com sutiã ou com o peito ou tórax, que, aliás, é peito no grego thórax, mas ao passar para o latim designou por muito tempo apenas a armadura com que o peito era coberto, vindo a designar propriamente a região do corpo depois de introduzida a medicina e a cirurgia em Roma.

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    Busto ganhou o significado de peito porque bustum designava em latim o local onde eram queimados os cadáveres. Burere em latim é queimar, étimo que está em comburere, presente na conhecida palavra combustão, que não é alguém com busto grande… Ali era erguida uma espécie de estátua de meio corpo de alguma personalidade ilustre, representando apenas o rosto e o peito, sem os braços.

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    Estátua veio do Latim statua, do mesmo étimo de status, cuja forma foi mantida no português como estrangeirismo latino, e de statutum, estatuto. O étimo está também em stabilire, estabelecer, fixar, deixar de pé.

    Temos, por fim, pessoa, que veio do Latim persona, máscara utilizada pelos atores para representar um ser humano ou alguém humanizado, donde personagem que fazia ressoar sua voz por orifício que representasse a boca na máscara, resolvendo, assim, a questão acústica do antigo teatro romano.

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    Persona é de origem controversa, provavelmente de fonte mais etrusca do que grega em sua viagem para o latim, mas curiosamente pessoa, sua tradução para o português, veio a designar o próprio ser humano e também Deus, como explicitado na Santíssima Trindade com as três Pessoas em Uma só. Por isso, não é redundante dizer-se pessoa humana.

    O fato é que do latim tardio tivemos também personalitas, declinado em personalitate, que deu ao português personalidade. E o império romano,  que espalhou a língua latina pelo mundo inteiro, criou também a palavra personalidade para designar o conjunto de saberes, de usos e costumes, e principalmente o caráter do ser humano, gerando também a expressão personalidade jurídica, que nas empresas ganha contornos às vezes bem diferentes da personalidade de seus fundadores ou criadores. Conhecemos empresas, portanto personalidades jurídicas marcadas por neuroses bem humanas, não? Ou, como dizia Cervantes, “todos são como Deus os fez, mas alguns são ainda piores”.

    Isto posto, antes que o busto do ex-juiz federal Sérgio Moro seja incinerado pelos atos criminosos de que vem sendo vítima a sua pessoa na invasão da privacidade de suas conversas, com o fim de levar a mesma multidão que o ama a odiá-lo ou a destruí-lo, prestemos atenção ao que nos disseram as palavras na origem, pois o étimo traz o verdadeiro significado que tiveram no berço, mostrando também que frequentemente mudaram para designar o contrário, não apenas o diferente. Fraude, do latim fraus, declinado em fraude, designou originalmente o engano, sem nada de intencional ou criminoso, mesmo na fonte remota do sânscrito. No latim arcaico, fraus era frus, étimo presente em frustrar e frustração, isto é, não obter o que se quer, por engano. Ou querer uma coisa, que entretanto resulta em seu contrário.

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    Que nos diriam as estátuas se falassem? Certa vez imaginei um programa cultural em que ao pé de cada estátua ou busto de nossas praças houvesse um dispositivo por meio do qual suas vozes fossem recuperadas e elas falassem, isto é, se tornassem pessoas, fazendo ressoar suas  palavras.

    Concluí naquela época e concluo agora que muitas delas nada iriam dizer. Ouviríamos apenas o soluço de cada uma delas. E sabem de onde veio soluço? Do latim sugglutium, engolido ou deglutido com dificuldade, donde a expressão “engolir o choro”.

    Meus prezados leitores, é do caráter desta crônica semanal não persuadir a ninguém do que pensa e sente este professor e escritor, porque seria desrespeitoso. Apenas propor a quem a lê um outro viés em seu olhar. No meu caso, esta viagem que as palavras fizeram ao correr de quase um milênio na língua portuguesa, não do berço ao túmulo — uma vez que nem todas as nascidas permanecem, muitas morrem, às vezes até de mortalidade infantil — mas no percurso de algumas idas e vindas e de algumas escalas imprevistas.

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    De resto, vanitas vanitatum, dixit Ecclesiastes, et omnia vanitas (vaidade das vaidades, diz o Eclesiastes, e tudo vaidade).

    PS. Voltarei ao assunto em próximo texto.

    *Deonísio da Silva
    Diretor do Instituto da Palavra & Professor
    Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
    https://portal.estacio.br/instituto-da-palavra

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