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Augusto Nunes

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O que pode ser mais importante?

Soube com surpresa e satisfação que Michele Bolsonaro discursara antes do marido e em libras, tornada a segunda língua oficial do Brasil, em 2002, por FHC

Por Valentina de Botas
Atualizado em 30 jul 2020, 20h02 - Publicado em 10 jan 2019, 17h37
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  • Valentina de Botas

    Era mar que era ilha, cercada de horizontes por toda a parte, bordados com garcinhas azuis e brancas, quando vi o mar pela primeira vez. Lá em Itamaracá, no meu Pernambuco, na casa perfumada de cajus da tia Ninha. Com 97 anos, a irmã mais velha de mamãe esteve conosco neste fim de ano em razão da morte recente de outra de minhas tias, ficará mais alguns dias adoçando tudo em volta e tentando outra vez me ensinar a fazer o mais delicioso doce do mundo: “Caju é caju, açúcar é açúcar, água é água, pronto: tem mistério não, minha fulô. O mais importante, meu amô, é conhecer o ponto certo da calda pra botar os cajus na panela, visse?”. Vi muitas vezes: o doce fica no porte de corte e com calda. Você o come e está condenado a vislumbrar o céu. Diabólico.

    Não assisti à cerimônia de posse de nenhum presidente, nem à de Dilma Rousseff. Ainda não entendo como o país elegeu e reelegeu essa catástrofe de terninho; mesmo aceitando, não dói menos, contrariando o que ordena um dos velhos bordões detestáveis do Brasil novo que recicla práticas velhas. Talvez tenha sido o tal “triunfo da narrativa”. Foi também pela força da narrativa sobre os fatos que o PT manteve o poder e ela talvez seja um dos fatores da vitória de Bolsonaro. No caso do PT, a narrativa sustentava que Lula defendia os pobres contra as elites, enquanto os fatos atrás do biombo retórico o instalavam como um integrante delas e regente de degeneração ampla e múltipla. No caso de Bolsonaro, o fato é que sua vida pública flagrava um antiliberal que sempre foi pró-PT no Congresso e fazia cosplay de antipetista nas redes sociais, mas a narrativa sustenta que ele é a cura para tudo issaí. Não assistiria à posse de Bolsonaro porque essas coisas são uma chatice e eu estava num cantinho do litoral norte de São Paulo, onde só queria molhar os pés, fazer passeios tão bobos quanto fundamentais no centrinho charmoso de São Sebastião, ir a algumas festas de amigos e inundar a alma de sol, sal e silêncio com a parentada que amo sem parar, em que todo mundo fala e ninguém escuta.

    Ir à praia cedo é uma inútil falta de humildade porque o nascer do sol, perfeitamente contemplável em fotos ou filmes, não precisa do testemunho de ninguém, e a amistosa brisa da manhã é perfeitamente desfrutável depois das 5 da tarde. Mas eu prometera à minha filha que faríamos determinado passeio só disponível de manhã e não sou aquele tipo detestável de pessoa que deixa antes do fim uma festa divina só porque tem de acordar cedo. Desconfio de gente assim. A vida é muito curta para isso, portanto que se emende tudo. Pois lá estava eu emendando tudo na praia e comendo umas goiabinhas (como diria Stanislaw Ponte Preta, na abertura de suas crônicas sensacionais), na manhã da posse, quando uma mulher de um grupo perto de nós, que ouvira só uma parte do que eu dissera, veio até mim decretar que o brasileiro que não assistisse à posse de Bolsonaro merecia morrer. Um homem do mesmo grupo veio buscá-la e se desculpou. Tudo bem, imagine, não tem problema. Mas tinha: um homem de outro grupo se aproximou do casal e berrou que quem assistisse é que deveria morrer. Que tal? Logo eu, da turma do deixa-disso, que só queria molhar os pés e aprender a fazer doce de caju. Não tenho medo, só não quero morrer já, não é por nada, um dia acontecerá – e tudo bem, pois a imortalidade nos mataria de certo modo –, mas queria viver até aprender o mais importante: o ponto exato da calda para botar os cajus.

    Sem desfechos fatais, as coisas se clarearam: a mulher tinha um distúrbio de saúde e o homem, bem, tinha um distúrbio. Fiz o passeio com minha filha e estava dormindo quando Temer passou a faixa a Bolsonaro. Mamãe e Tia Ninha, ambas eleitoras do presidente (titia fez questão de votar “sempre contra o PT que lascou o nosso Brasil e enfiou a mocidade nos tóchicos”), me contaram tudo com alegria e esperança. Titia fala de um outro tempo e lugar: lembra-se de Washington Luís, adorava Juscelino, gosta do Temer “cabra bom que não renunciou mesmo com as mentiras da Globo, salvando nosso Brasil do PT”, não gosta dos presidentes militares, mas detesta mesmo Getúlio, Lula e Dilma. Decidiram escrever a Bolsonaro para pedir que não deixe prenderem o Temer.

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    Soube com surpresa e satisfação que, na cerimônia, Michele Bolsonaro discursara antes do marido e em libras, tornada a segunda língua oficial do Brasil, em 2002, por Fernando Henrique Cardoso. Numa cerimônia simbólica como qualquer outra, a primeira-dama discursar antes do marido é a quebra de um protocolo que poderia ser capitalizada por feministas para impulsionar o respeito às mulheres. Mas as militantes de um feminismo cretinizado pelo ressentimento e pela ideologia degeneraram a luta pelos direitos femininos na emasculação do macho, que seria a pedra fundamental de um mundo tristonho naquilo que há de mais tristonho na luta contra a opressão: a mera troca de papéis entre opressores e oprimidos. Nada disseram porque seria inevitável reconhecer o acerto do cerimonial da posse de Bolsonaro, mas “acerto” e “Bolsonaro” não cabem na mesma frase segundo a sintaxe das feministas para as quais o principal é acessório. Também por isso, quem nasce para ser kéfera jamais superará o tatibitate na língua de uma camillepaglia.

    Já o rosa-e-azul da ministra Damares Alves teve sucesso imerecido. Prefiro Renoir quando penso nessa fala sem importância da ministra cuja pasta não deveria envolver a família nem a mulher – uma não é assunto de Estado; a outra, bem, se é necessário explicar, então explicar será inútil – e que, como todo o governo, especialmente o presidente que se rebaixa a bater boca no Twitter com o imprestável Fernando Haddad, deveria se concentrar no assunto da vida do país: a reforma da previdência. A zonzeira dos primeiros dias da gestão Bolsonaro, os bate-bocas artificiais e calculados com a imprensa, a postura passiva-agressiva de Onyx Lorenzoni quando fala a jornalistas (comparem com a serenidade e firmeza do ministro Sérgio Moro) refletem o receio do presidente de desagradar suas castas de estimação que precisam ser afetadas numa reforma eficaz da previdência. Sem ela, o governo não tem grana para investir e não atrai investimentos. Sem ela, não tem narrativa que resolva. Sem ela, não tem rosa nem azul: vamos mesmo é nos ferrar de verde e amarelo.

    Acolhi as coisas boas flutuando entre as palavras de mamãe e tia Ninha, como a meninota que tentava pegar as garcinhas que pousavam na beira da praia e ficou em mim a leveza daquilo: este ruflar de asas ansiando o horizonte; esta delicadeza de seres ariscos quando contidos; esta fugacidade do que é intenso numa urgência resignada de quem descobriria que tudo pode acabar agora mesmo. Quando segurei uma delas, num segundo era minha; no outro, da amplidão em horizontes sucessivos. Ela me ensinava outro jeito para retê-la: deixando em mim o desejo pelo horizonte perfumado de cajus na calda. O que pode ser mais importante?

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