Marcos Troyjo: A nova divisão internacional do trabalho
Produção desloca-se do taylorismo ao 'taylor-made'
Por Augusto Nunes Atualizado em 30 jul 2020, 21h27 - Publicado em 30 out 2016, 03h32Comemoraremos em 2017 os 200 anos da publicação do livro “Princípios de Economia Política e Tributação” de David Ricardo, que ao lado de Adam Smith e Thomas Malthus formam a tríade da Escola Clássica de economia.
A obra é particularmente importante para o comércio internacional na medida em que introduz o conceito de “vantagens comparativas”.
Num (impreciso) resumo, isso significa que se a Inglaterra é boa, por suas habilidades específicas, em produzir locomotivas, não deve gastar tempo e esforço em tentar fazer vinho do Porto.
Já Portugal, por seu turno, se graças a suas condições geográficas é bom em vinho do Porto, não deve meter-se a fazer locomotivas.
Mediante a troca do resultado dessas vantagens comparativas, o comércio floresce. Produtores, consumidores, todos, enfim, ganham.
E de tal intercâmbio de especialidades resulta, naturalmente, uma divisão internacional do trabalho e da produção. De um lado, países produtores de bens industrializados. De outro, provedores de matéria-prima ou itens de menor valor agregado.
Mas, justamente às vésperas do bicentenário de tal teoria, o mundo ironicamente está prestes a embarcar numa nova divisão internacional do trabalho.
Nessa inédita configuração, terá cada vez menos importância a noção de vantagens comparativas —como a entendíamos na formulação original de David Ricardo— ou mesmo o conceito de “países de baixo custo” (LCCs, na sigla em inglês).
Já em fins dos anos 1940, Raúl Prebisch, o mais influente (para o bem e para o mal) economista latino-americano, indicava que “a realidade está destruindo na América Latina aquele antigo esquema da divisão internacional do trabalho que, depois de haver adquirido grande vigor no século 19, seguia prevalecendo doutrinariamente até o presente”.
Prebisch se referia a uma divisão de tarefas produtivas segundo a qual os países “centrais” especializavam-se em bens de maior valor agregado e os “periféricos” nas commodities.
Com sucessivas crises econômicas da primeira metade do século 20, as grandes guerras e a dramática ascensão dos EUA —que ao final da década de 1940 era não apenas a maior potência industrial, mas também o maior produtor agrícola do mundo—, os periféricos se viram desprovidos de mercados para seus produtos e de liquidez para seu equilíbrio fiscal.
Prossegue então, sobretudo na América Latina e na Ásia, uma radical tentativa de industrialização por substituição de importações. Na primeira região, o modelo privilegiou “reservas de mercado” para o empresariado interno. Na segunda, a proteção para que empresas nascentes (infant-industries) fortalecessem musculatura para competir internacionalmente.
No campo industrial, os latino-americanos buscaram o ideal de exportar por que cresciam. Os asiáticos, o de crescer por que exportavam. A história dos últimos 60 anos mostra que os segundos tiveram mais êxito do que os primeiros.
Ainda assim, seja porque protegiam indefinidamente setores industriais (na América Latina), ou competiam no quesito custo (no Sudeste Asiático), estes países de industrialização recente (NICs, na sigla em inglês) ofereceram alguma complementariedade às economias centrais.
Os latino-americanos, ao se fecharem, fizeram com que empresas transnacionais de EUA, Europa e Japão fossem atraídas a estabelecer operações em território latino-americanos de modo a tirar benefícios de um mercado interno protegido.
E os asiáticos, na medida em que ofereciam custos mais baixos e orientação pró-exportadora, transformaram-se em plataformas de “outsourcing” ou mesmo da realização de segmentos específicos dos processos produtivos —robustecendo assim as chamadas “cadeias globais de valor”.
É claro que tudo isso se complexifica quando a China se torna protagonista do modelo asiático. E sua arremetida industrial é de tamanha escala que ela própria, nos últimos 15 anos, permitiu aos latino-americanos crescerem “à Ricardo”-tirando proveito do enorme apetite chinês por matérias primas em que apresentam vantagens comparativas.
Nesse estado de coisas, e tomando os Brics por exemplo, a China seria a “fábrica” do mundo. O Brasil, sua fazenda. A Índia, seu provedor de TI e outsourcing. E a Rússia, sua fonte de energia e minerais.
Grosso modo, os demais emergentes se caracterizariam por pertencer a um desses “tipo-ideais”, cuja competitividade residiria em aproveitar as bênçãos da natureza ou a baixa remuneração da mão de obra. E, claro, aos EUA, europeus e Japão caberia a função de “laboratório” de design, pesquisa e desenvolvimento da economia mundial.
Mas ante a realidade cada vez mais presente da Quarta Revolução Industrial, essas caracterizações transformam-se radicalmente.
A crescente utilização de robótica e automação tira muito das vantagens comparativas da mão de obra barata.
O Brasil pode ter a maior bacia hidrográfica do mundo, mas é a China a maior produtora —e exportadora— de peixes de rio.
A propósito, peixes chineses e vietnamitas, como o pouco saboroso “panga”, estão invadindo os mercados de Brasil, Índia e da África subsaariana.
Nessa nova economia intensiva em tecnologia, talento e estratégia, teremos de repensar redes de suprimento e cadeias de valor para além das vantagens comparativas.
Mesmo no agronegócio, pode-se reverter a lógica tradicional de quem é produtor e quem é consumidor.
E, nas manufaturas (que cada vez mais são “mentefaturas”), o que estamos observando por meio da customização e da individualização da indústria 4.0 é uma acelerada transição do taylorismo ao “taylor-made”.
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