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Augusto Nunes Por Coluna Com palavras e imagens, esta página tenta apressar a chegada do futuro que o Brasil espera deitado em berço esplêndido. E lembrar aos sem-memória o que não pode ser esquecido. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.
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Heraldo Palmeira: Balada da vida

Amanheceram tantas vezes que ele perdeu a noção de beleza, tantas foram as vezes que a viu tão bela. Era difícil acreditar que o mundo era o mesmo, um só

Por Augusto Nunes Atualizado em 30 jul 2020, 20h38 - Publicado em 23 dez 2017, 11h17
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  • A esquina estava turva pela neblina, a chuva fina piorava muito a sensação térmica e o desconforto de estar na rua. Empurrou a porta de vidro, emoldurada por um trabalho refinado de artesãos dos metais, para se livrar da ventania. Porta antiga, pesada. Ele estava quase congelando e foi bom entrar no ambiente aquecido da cafeteria centenária.

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    O chapéu e o sobretudo vinham ensopados, pesados. Estendeu como pôde na cadeira vazia do outro lado da mesa. Ele estava gelado. O velho garçom se aproximou e pediu desculpas, encerrando seu turno, mas “a menina” viria atender.

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    Ela veio, iluminando tudo ao redor. Tão deslumbrante, que dava vergonha de pedir. Mas pediu. E voltou outros dias e mais outros e outros. E ele pediu, ela atendeu.

    E saíram pela rua, ora uma lua brincando no corpo ora a água escorrendo no rosto. O cabelo liso misturando a intenção de cachos, caindo pelas costas, sem trilha, como um linho em desalinho. Entraram em becos sem saída. Só restava o beijo. Longo, forte, apaixonado. Como uma penitência de quem não tem medo de pecar. Como uma saída que não se quer encontrar.

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    E riram quase como nunca se riu. E ela andava nua como uma lua inteira num céu sem nuvens. Como uma velha canção rock’n’roll que não termina quando acaba, que segue tocando enquanto o coração se acalma, nós sabemos, nós sabemos. Como a fumaça que sobe na contraluz consumindo o cigarro bem devagar.

    Amanheceram tantas vezes que ele perdeu a noção de beleza, tantas vezes foram as vezes que a viu tão bela. Era difícil acreditar que o mundo era o mesmo, um só. Ainda mais quando a menina dançava em sombras, dando contornos de paraíso à sua visão. E aos seus ouvidos com a música suave, tocando baixinho. E as cortinas dançando pela fresta do vento.

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    Eu nunca quis ninguém
    E não vou começar agora
    Eu nunca planejei, eu não entendo
    Então me diga o que posso fazer
    Não se afaste
    Sim, há algo sobre você
    E eu não posso acreditar
    O jeito que você me conhece
    Você sente todos os gostos
    Você sabe quando estou triste
    Mas aqui no meu coração
    Há emoções misturadas
    Mas há algo sobre você
    Você sabe que há algo sobre você
    Você veio brilhando, babe
    Agora há algo sobre você
    Eu não sei
    Não sei o que estou sentindo

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    Desceu do avião sem pressa, o aeroporto estava calmo àquela hora. Caminhou pela calçada quase correndo para o táxi. Da janela do hotel viu algumas pessoas andando sobre a neve. Juntou as mãos e soprou, lembrando da dança das cortinas. Embaçou o vidro pelo contraste do próprio calor com a geleira de Viena. Era quase Natal, a cidade estava linda!

    Logo à frente
    Eu vi uma luz trêmula
    Minha cabeça ficou pesada
    E minha visão embaçou
    Eu tive que parar para passar a noite
    Lá estava ela, na entrada da porta
    Eu ouvi o sino da Missão
    E eu estava pensando comigo mesmo
    Aqui pode ser o céu
    Ou pode ser o inferno
    Então, ela acendeu uma vela
    E me mostrou o caminho
    Havia vozes pelo corredor
    Eu pensei tê-las ouvido dizerem
    Bem-vindo ao Hotel Califórnia
    Que lugar encantador
    Que rosto encantador
    Vários quartos no Hotel Califórnia
    Qualquer época do ano
    Você pode encontrá-lo aqui
    A última coisa que me lembro
    Eu estava correndo para a porta
    Eu tinha que encontrar a passagem de volta
    Para o lugar onde eu estava antes

    Pensou no lugar onde estava antes e não soube se adormeceu ou simplesmente sentiu saudade a noite inteira. A cidade era deslumbrante de dia também. Andou devagar pelas ruas, o olhar perdido nas vitrines. Era como se buscasse em vão mirar o que já não existia.

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    De repente, começou a ouvir a própria voz dentro da cabeça, como se houvesse alguém declamando:

    “Ontem você estava tão bonita; eu esqueci de pedir que fizesse uma foto instantânea. A festa rolando lá fora, na sala e na varanda, e nós dois sozinhos lá dentro falando coisas sérias”.

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    Os outros sorrindo o sorriso das festas, a gente buscando motivo pra festa. Havia um pontinho apenas, a nos deixar preocupados. Era preciso saber logo a que veio.

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    “Eu sou otimista”, você me disse tão linda, tão otimista, com aquele sorriso que ilumina tudo – a vida que você dá a tudo com aquele sorriso! “O pontinho não sabe com quem está mexendo!”, eu pensei.

    Ah!, eu queria dizer tanta coisa… Mas, no fundo, você sabe de todas as coisas que eu gostaria de falar. Há o amor do qual já dissemos, lembra? Eu não ligo que o mundo não compreenda, basta que a gente faça. Como o beijo que já sabemos como será. É inevitável rir do mundo. Ele é risível!

    Eu não sei do amanhã, só vejo o até breve porque já é tão breve… É o que dá para dizer todo dia, enquanto há tempo. Eu estarei naquele porto que a gente combinou, contando as horas, aguardando você chegar carregando a vida. Como sempre foi seu destino, é da sua natureza.

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    Ficarei olhando o rio, com o vinho que nos prometemos, esperando para lhe ver pela calçada, o vento zanzando no seu vestido. Mas não tem problema se não aparecer.

    Você nunca vai estar sozinha, eu não vou deixar que esqueça isso, mesmo sem saber onde está agora. Aquele seu retrato que não foi feito ficou na minha memória, não vou esquecer. Eu lembro que seus olhos me disseram muita coisa naquela hora. Tocaram a balada da vida.

    Eu me entreguei às rezas que conheço e até às que desconheço, falei com santos que nem sei se existem! E terminei rezando uma velha canção: “Você é forte/letras e músicas/todas as músicas que ainda hei de ouvir”. Estou calmo agora, quase sinto você. Deve ser o vento assobiando pelos becos. Os mesmos becos onde tudo começou depois que saímos da cafeteria”.

    Sequer um rosto na multidão! Nada! Apenas a saudade querendo enxergar o impossível. Ele caminhou mais um pouco, como teria de fazer o resto da vida. Sozinho sem nunca estar sozinho. Ela estaria nos sons estranhos, nos sopros do vento, nos sobressaltos noturnos, na preguiça das manhãs de inverno. Como aquela que cobria tudo de branco, apressando a vontade de voltar para a calçada do porto. Ainda restava por lá o sol e o movimento das marés.

    Trechos de:
    Something about you (Brian Howe-Terry Thomas)
    Hotel California (Don Felder-Don Henley-Glenn Frey)
    Você é linda (Caetano Veloso)

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