Publicado no Estadão
José Serra sai do Itamaraty justamente num intenso momento da política externa. Dois movimentos empurram a América Latina para um realinhamento político e econômico, com uma chance de ouro para o Brasil recuperar o protagonismo perdido na região. De um lado, Donald Trump sacode blocos, certezas e bom senso com seu protecionismo extemporâneo. De outro, a Venezuela esfarela, arrastando junto o “bolivarianismo” de Hugo Chávez.
Como reação, os chanceleres do Mercosul e da Aliança do Pacífico vão discutir, possivelmente em abril, na bela Buenos Aires, não apenas uma trégua na concorrência, mas uma nova relação. O Mercosul original inclui Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. A Aliança do Pacífico, Chile, Colômbia, Peru e México. Objetivamente, vão discutir pontos de interesse comum. Subjetivamente, como escapulir das garras – e maluquices – de Trump.
Será, portanto, uma tentativa de reconstruir a unidade da região, desde o Norte até o Cone Sul, passando pelo estratégico grupo andino. Esse também era o sonho de Chávez ao lançar o “bolivarianismo”, mas, quanto mais falava em unidade, mais ele rachava a América Latina e atiçava a beligerância entre os “amigos” e os “inimigos” de Washington.
O Brasil, que tem peso político, econômico, territorial e populacional para mediar esse eterno dilema do “quintal dos EUA”, preferiu brincar de ideologia, omitir-se nos momentos graves, assistir de camarote à corrosão social da Venezuela, jogada nas mãos do inqualificável Nicolás Maduro. Deixou o circo pegar fogo, com Equador e Bolívia ao sabor dos desvarios venezuelanos e a Argentina fantasiada de “esquerda” (com o casal Kirchner só enriquecendo).
Enquanto isso, os pragmáticos Colômbia, Peru e Chile atravessaram longos períodos de estabilidade política e crescimento econômico e uniram-se numa frente que, menos do que ideologia, preocupa-se com seus interesses nacionais. Se a Venezuela olhava para o sul e neutralizou Brasil e Argentina, eles olharam para o norte e se aliaram ao México.
Tudo ia muito bem, não fosse a “debacle” venezuelana e o surgimento do fator Trump. As certezas se esvaem e as coisas mudam de figura, com um personagem central nas articulações, o México, vítima de uma eterna armadilha: a crucial dependência dos EUA. Quando os ventos que sopram do vizinho são amigáveis, é uma festa. Quando se tornam quentes ou gelados demais, um horror. Como agora.
Em 2009, em plena crise mundial gerada nos EUA, o então presidente Felipe Calderón veio ao Brasil e, em entrevista a mim e a Flávia Marreiro, apontou a excessiva dependência dos EUA (destino de 83% a 91% das suas exportações) como causa do desastre mexicano. Por isso, ele buscava a “diversificação” política, econômica e diplomática do México em direção à América do Sul. Mas a potência foi se recuperando e a tese, arrefecendo. Até que veio Trump, retirando os EUA do TPP, ameaçando a Aliança do Pacífico e criando um muro real entre os dois países. A “diversificação” volta com tudo.
Há um entrave, porém, nesse realinhamento da América Latina: a Odebrecht, que saiu por aí comprando empresas, governos e até presidentes, entre outros, na Argentina, Peru, Colômbia e, claro, Venezuela, como parte de uma audaciosa operação dos governos petistas e do BNDES para ter algo que o Brasil já teria naturalmente – liderança política.
Essa “desenvoltura” volta como bumerangue. Se foi o principal produto de exportação da força do Brasil, a Odebrecht é hoje o principal produto podre da diplomacia brasileira. E estará certamente pairando nos debates de Buenos Aires, aos quais Brasília se apresentará em parceria crescente com a Argentina, mas com um novo chanceler e um clima interno de instabilidade política.