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Coitado do povo infeliz

Vocês, leitores têm o direito de escolher os parlamentares que merecem ser chamados de analfabetos por não saberem o abecê das letras e das contas

Por Deonísio da Silva
14 jul 2019, 13h05

Deonísio da Silva

No Brasil, ler é tão importante, ainda que tão poucos tenham o costume, que analfabeto virou xingamento. Como e quando começou isso?

De alguém que não sabia ler os antigos gregos diziam ser analfabeto, por desconhecer as duas primeiras letras do alfabeto grego, o alfa e o beta. Mas, nós, lusófonos e brasileiros, dizemos que não sabe nem o abecê, isto é, ignora o “a”, o “b” e o “c”, as três primeiras letras do alfabeto, um acréscimo de 50% no rol das letras.

Nossa elite universitária sonha com requerimentos em formulários estendidos também à fala. E o que acontece? Por não dominar sua linguagem, quase cifrada em hieroglifos, o povo pede a metade do que precisa. Por dominá-la amplamente, os pequenos próceres concedem a metade do que é solicitado. Em resumo, o povo só fica com 25% do que pediu, se é que ainda ensinam nas escolas fundamentais que a fração 1⁄4 é a metade de 1/2, isto é, que 25% equivalem à metade de 50%.

O povo fez na expressão “abecê” o resumo indispensável a cada ofício. Esta junção das três primeiras letras do alfabeto, tal como são pronunciadas , designou originalmente, no século XIII, ainda nos albores da língua escrita, a marca que os escrivães utilizavam para autenticar cópias de documentos. Em operações comerciais a prazo, a original, marcada com a letra “A”, ficava com o notário, e as outras duas eram divididas entre o comprador e o vendedor. As três eram impressas em pergaminho ou folha de papel. 

Dois séculos depois, ganhou novo significado, ao designar a escolaridade mínima, ainda que se entendesse que quem soubesse o abecê sabia também as quatro operações: somar, diminuir, dividir e multiplicar. Um pouco mais tarde, veio a designar ainda as primeiras noções de um ofício, arte, técnica, doutrina. 

Portugal teve até reis analfabetos, que sabiam as quatro operações, mas desconheciam o abecê. Um deles, Dom Dinis, o Lavrador, fundou a Universidade de Coimbra, em 1308. Na primeira metade do século XVI, chegou à língua portuguesa a cartilha, primeiro livro escolar, do espanhol cartilla, cartinha, também sinônimo do abecê, diminutivo de carta, do Grego karthes, folha de papiro para escrever.

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No Brasil, abecê veio a designar também poema de cunho popular, cujos versos celebravam a vida de santos, personagens famosos e até mesmo cangaceiros e bandidos, cujos feitos heroicos eram apregoados em estrofes iniciadas pelas letras do abecê, respeitando-se sua sequência, de que é exemplo letra de Roque Santeiro, peça de teatro de Alfredo Dias Gomes, transposta também para a televisão:

“E no abecê do Santeiro/ o que diz o A, o que diz o A?/ O A diz adeus à matriz./ O que diz o B, o que diz o B?” Depois de informar que o B indica “batalha de morte”, os versos chegam ao que diz o C: “coitado do povo infeliz”.

Com a industrialização de cidades próximas a São Paulo, abecê passou a designar a região dos municípios de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano, aos quais foi acrescentado mais tarde o de Diadema, mudando-se a designação para abecedê, já existente no século XVI como sinônimo de abecê. 

Já abecedário, do latim abecedarium, designa conjunto de todas as letras que compõem o alfabeto. Foi formado a partir das três primeiras. Mas por que chamamos alfabeto ao conjunto começado por abecê? 

A palavra alfabeto veio do Grego alphabetos pelo Latim alphabetum. Essas denominações derivam das duas primeiras letras do alfabeto grego, alfa e beta. 

Entre os primeiros alfabetos do mundo estão o ugarítico (séc. XV a.C.), o fenício (séc. XIII a.C.), o etrusco (séc. VIII a.C.) e o hebraico (séc. XIII a.C.). Os fenícios, hábeis navegadores e comerciantes, deram origem aos alfabetos grego (séc. X a.C.), latino (séc. VII a.C.) e árabe (séc. IV a.C.). O alfabeto cirílico , presente atualmente no Russo, é um dos mais tardios, tendo surgido no século IX d.C. 

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As letras do alfabeto não saíram do nada. Nosso abecedê, por exemplo, procede das letras alfa, beta, gama e delta, vindas de hieroglifos que representavam o boi, a casa, o bumerangue e a porta. 

E prossegue com alusões ao ato de contemplar (E, do HE fenício); a um gancho ou suporte (o F); a uma cerca ou corda trançada (o H); à mão ( o I ou J); à palma da mão (o K); ao cajado (o L); à água (o M, originalmente representando as ondas do mar); à serpente (o N); ao olho (o O); à boca (o P); ao nó (o Q); à cabeça (o R; RECH em fenício); ao dente (o S, vindo do CHIN fenício); à marca (o T); ao peixe (o X) ; e à foice (o Z).

O alfabeto grego acrescentou outras letras, como o Teta, vindo do hieroglifo que representava o Sol, cujo correspondente na escrita semítica era TETH, e o Ômega, representado por um “U” em forma de ferradura.

Coitado do povo infeliz! Não lê ou lê pouco; e não escreve. Mas escolhe, vota e elege. A quem? Àqueles que vimos votar na semana passada a Reforma da Previdência. Vocês, leitores — e somente vocês — têm o direito de escolher quais são os parlamentares que merecem ser chamados de analfabetos por não saberem nem o abecê das letras e das contas.

*Deonísio da Silva
Diretor do Instituto da Palavra & Professor
Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
https://portal.estacio.br/instituto-da-palavra

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