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Censura: é verdade esse “bilete” do STF

A censura de vez em quando aparece, aqui e em outros lugares: os censores proibiram Gustav Flaubert, na França, na segunda metade do século XIX

Por Deonísio da Silva
Atualizado em 4 jun 2024, 16h29 - Publicado em 21 abr 2019, 11h22

Deonísio da Silva

Em agosto do ano passado, em Bocaina (SP), Gabriel Lucca, um menino de seis anos, aluno da professora Paula Renata Robardelli, não queria ir para a escola no dia seguinte e entregou à mãe um pedaço de papel rasgado onde estava escrito: “Senhores Paes, amanhã não vai ter aula porque pode ser feriado. Assinado: Tia Paulinha. É verdade esse bilete”.

O menino cometeu apenas dois erros de ortografia, mais do que perdoáveis. Ele estava nos primeiros passos de duas das quatro ações indispensáveis ao ensino de Português: ouvir, falar, ler e escrever. E deu indícios de vocação diplomática: “pode ser feriado”. Talvez não seja…

O guri (peixe pequenino para os tupis e, por isso, menino) ou o piá (extraído das minha entranhas, para os caingangues, no ponto de vista dos pais) escreveu paes, em vez de pais; e bilete, em vez de bilhete.

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Esses tropeços devem ser creditados mais às notórias incoerências da grafia da norma culta da língua portuguesa do que a insuficiências do menino. Logo ele aprenderá que a língua falada e a língua escrita têm códigos diferentes.

Quanto ao “não vai ter aula” em vez de “não vai haver” ou “não haverá”, é mais perdoável ainda: faz tempo que no coloquial o verbo “ter” é usado como substitutivo de “haver”, de “existir” e outros verbos de domínio conexo.

Tia Paulinha é o apelido carinhoso da professora, pois, se não era costume designar as professoras dos primeiros anos por “tias”, este tratamento – apenas carinhoso, para alguns; reprovável, para outros – vigora no ambiente escolar há algumas décadas.

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Esse “bilete” talvez não entre para a História do Brasil. Outros, porém, mais curtos, como os do presidente Jânio Quadros – personagem vulcânico de nossa vida política e o primeiro professor de português a ter chegado à presidência da República — ou um pouco mais longos, como certos despachos de ministros, já entraram.

Eles compõem histórias do Brasil duplamente lendárias. E no capítulo da censura há “biletes” hilários, como o despacho que em 1965 mandou prender o autor da peça Electra, que estreava no Teatro Municipal de São Paulo (SP). O autor, o grego Sófocles, morrera no Século V a.C.

Lenda, do Latim medieval legenda, designa o que deve ser lido, conhecido, como as atuais legendas de fotos e filmes. Em nossa história, antiga ou recente, a censura está repleta de lendas e de coisas que devem ser lidas.

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Entre outros “biletes” famosos, um deles completa 43 anos. Num ato impulsivo, o ministro da Justiça do Governo de Ernesto Geisel proibiu um livro que se tornou o caso-síntese da luta, por parte de quem escreve ou publica, contra a censura.

O autor era um dos diretores da Light, é verdade este “bilete”, e está documentado. No dia 14 de dezembro de 1976, a mulher de uma autoridade recebeu de presente de uma amiga o livro Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, então comercializado num envelope de plástico lacrado junto com um cartão de Boas Festas. Ela leu trechos do conto-título ao marido e este ligou para Armando Falcão, então ministro da Justiça. É o que reza a lenda.

No dia seguinte, 15/12/1976, o Diário Oficial da União publicava o seguinte despacho do ministro: “Nos termos do parágrafo 8º do artigo 153 da Constituição Federal e artigo 3º do Decreto-Lei nº 1.077, de 26 de janeiro de 1970, proíbo a publicação e circulação, em todo o território nacional, do livro intitulado Feliz Ano Novo, de autoria de Rubem Fonseca, publicado pela Editora Artenova S. A., Rio de Janeiro, bem como determino a apreensão de todos os seus exemplares expostos à venda, por exteriorizarem matéria contrária à moral e aos bons costumes. Comunique-se ao DPF”.

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Na semana passada, os ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, do STF, acrescentaram novas páginas a proibições deste tipo, mostrando, mais uma vez, e certamente não foram os últimos a fazê-lo, que a censura no Brasil é um tiro pela culatra, um ato execrável, predatório e inútil, que contraria os objetivos aos quais se propõe: proibir, calar, vetar, impedir, prejudicar.

A dupla de ministros proibiu as publicações da revista Crusoé e do site Antagonista retirando-os do ar. De novidades na truculência, somente a tecnologia e os neologismos sites que os hospedam.

A censura de vez em quando aparece, aqui e em outros lugares: os censores proibiram Gustav Flaubert, na França, na segunda metade do século XIX, levando o autor aos tribunais, ocasião em que o grande escritor, apavorado, recuou covardemente e disse que o propósito de seu romance Madame Bovary era moralizar e educar as moças. Nos EUA, um juiz com mais modéstia do que os dois ministros citados, solicitou parecer literário e liberou Ulisses, de James Joyce, na segunda metade do século XX.

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Os dois magistrados do STF não consultaram os colegas e nas horas seguintes já sofriam pressões de todos os lados, incluindo a própria trincheira onde atuam para defender a Constituição.

Celebremos que recuaram, mas eles têm que recuar mais e respeitar os limites da Constituição em vigor para evitar o triste recorde do ministro da Justiça, Armando Falcão, que, em apenas quatro anos, proibiu mais livros do que a Inquisição nos temos monárquicos e do que o famoso Index Librorum Proihibitorum (Índice dos Livros Proibidos) a Igreja Católica.

Rubem Fonseca recorreu à Justiça. O processo demorou 13 longos anos e, no segundo semestre de 1989, Feliz Ano Novo foi enfim liberado, mas em apertado placar de 2 x 1, no então Tribunal Federal de Recursos (TFR) que virou TRF depois da Constituição de 1988. Numerosas edições piratas já tinham sido feitas por todo o Brasil, talvez até mesmo pelo próprio editor.

Infelizmente, é verdade esse bilete. E felizmente é também verdade que dos 11 ministros a maioria deles não pensa em censurar a palavra escrita nesses tempos em que ela já está proibida pelo seu principal inimigo, o analfabetismo, que leva o Brasil a ser uma nação de mais de 200 milhões de habitantes, que tem 143 milhões de eleitores, nem todos leitores, dos quais a maioria não entende o que ministros do STF escrevem, mas entende o que escrevem os jornalistas em publicações como a Crusoé e o Antagonista, cujos diretores, os jornalistas Mario Sabino e Rodrigo Rangel, emitiram nota pública na quinta-feira passada agradecendo aos leitores a solidariedade durante os poucos dias que a revista e o site foram mantidos sob censura.

*Deonísio da Silva
Diretor do Instituto da Palavra & Professor
Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
https://portal.estacio.br/instituto-da-palavra

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