Black Friday: Revista em casa a partir de 8,90/semana

Augusto Nunes

Por Coluna Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Com palavras e imagens, esta página tenta apressar a chegada do futuro que o Brasil espera deitado em berço esplêndido. E lembrar aos sem-memória o que não pode ser esquecido. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.
Continua após publicidade

‘Meio médico, meio escravo’, um texto de Fernando Reinach

Publicado no Estadão deste sábado FERNANDO REINACH Incapaz de convencer jovens médicos a trabalhar no SUS, o governo federal resolveu criar um novo profissional, o meio médico meio escravo. Esse profissional, inspirado nos mitológicos centauros e na famosa meia muçarela meia calabresa, virá em duas versões, nacional e importado. É a pizza que vai ser […]

Por Branca Nunes Atualizado em 31 jul 2020, 05h47 - Publicado em 14 jul 2013, 12h14
  • Seguir materia Seguindo materia
  • Publicado no Estadão deste sábado

    FERNANDO REINACH

    Incapaz de convencer jovens médicos a trabalhar no SUS, o governo federal resolveu criar um novo profissional, o meio médico meio escravo. Esse profissional, inspirado nos mitológicos centauros e na famosa meia muçarela meia calabresa, virá em duas versões, nacional e importado. É a pizza que vai ser servida no SUS.

    Durante anos dei aula para os calouros da Faculdade de Medicina da USP. Eram jovens que haviam escolhido uma profissão em que a derrota é certa. Ninguém consegue escapar da morte. Ingenuamente arrogantes e prepotentes, algo compreensível em quem sempre foi o melhor aluno, sobreviveu dois anos de cursinho, e se classificou entre os 300 melhores no vestibular mais competitivo, acreditavam que se tornando médicos curariam doenças letais, mitigariam o sofrimento, descobririam novos remédios e, lutando contra o único inimigo realmente invencível, ajudariam a humanidade. Durante os dois primeiros anos de curso, a maior dificuldade era mantê-los longe do hospital. Bastava surgir a oportunidade de participar em alguma atividade que envolvesse pacientes e a frequência nas minhas aulas de bioquímica minguava. Isso não era um problema, aqueles alunos aprendiam sozinhos.

    Continua após a publicidade

    Mas nos anos seguintes a realidade desabava sobre a cabeça dos alunos. O primeiro cadáver dissecado, cenas de sofrimento, a primeira morte observada de perto, a primeira parada cardíaca que não consegui reverter, um erro que só não foi fatal porque um supervisor estava atento. A primeira noite no pronto-socorro, uma lâmpada quebrada dentro da vagina de uma paciente. Na década de 80 ano, um aluno se suicidava todo ano. Hoje existe na Medicina da USP um serviço dedicado exclusivamente a ajudar os alunos a enfrentar a impotência e o convívio com o sofrimento e a morte.

    Mas a realização do sonho também aparece, sofrimentos são amenizados, situações desesperadoras são revertidas. Aos poucos, os alunos percebem que a medicina moderna é poderosa, mas complexa. Com conhecimento teórico, muita prática e um trabalho coordenado de toda a equipe, o sonho pode se tornar realidade.

    A arrogância do calouro que acreditava que se bastava, que o sucesso dependia somente de sua dedicação e esforço, desaparece. Ele aprende que o bom médico, sem recursos diagnósticos e equipamentos, sem leitos hospitalares, sem remédios, sem enfermeiros, sem fisioterapeutas, sem nutricionistas e sem um processo de gestão sofisticado e ágil, vai praticar uma medicina medíocre.

    Continua após a publicidade

    Doenças que poderiam ser curadas pioram, doenças controláveis progridem rapidamente e mortes que poderiam ser evitadas ocorrem frequentemente. Aprendem que o médico é somente uma peça importante do sistema de saúde. Esse aprendizado não é teórico, os alunos trabalham no caos semiorganizado do Hospital das Clínicas, fazem estágios em outros hospitais públicos e em centros de saúde. Ao terminar o curso, eles sabem que praticar a medicina sem suporte é tão difícil quanto jogar tênis sem raquete.

    Para os recém-formados, a frustração mais difícil de tolerar é não praticar a medicina que aprenderam por falta de infraestrutura. Muitos, incapazes de suportar a impotência diante de pacientes que voltam piores por falta de remédio, frustrados diante de pacientes que não podem ser tratados por falta de resultados de diagnósticos, ou desesperados com a visão de filas infinitas, abandonam a prática médica. Outros, apesar de despreparados para tarefas administrativas, se tornam gestores na esperança de melhorar a infraestrutura pública. Vários preferem trabalhar em hospitais de elite, onde a infraestrutura é quase perfeita. Alguns desenvolvem uma casca mais grossa e aceitam fazer o que é possível, tolerando a frustração. E é claro que há os que se aproveitam da bagunça para fingir que trabalham e receber o salário no final do mês.

    Não é de se espantar que nos últimos anos os serviços públicos não tenham conseguido atrair médicos para trabalhar nos postos de saúde e hospitais onde as condições de trabalho são piores. Os salários foram aumentados, mas a maioria dos médicos recusa um emprego fixo de R$ 10 mil em um local sem infraestrutura. O experimento não foi levado adiante, mas seria interessante saber o salário necessário para convencer os melhores alunos de nossas melhores universidades a venderem seus sonhos.

    Continua após a publicidade

    Melhorar as condições de trabalho é a solução óbvia. Mas isso exige que o governo assuma a culpa e deixe de empurrar o problema com a barriga. Mais fácil é culpar os jovens médicos, pouco patrióticos, que só pensam em dinheiro e se recusam a trabalhar em um sistema público de saúde bem organizado, eficiente, sem filas e tão bem avaliado pela população.

    Diálogo no Planalto: “A solução é forçar os médicos a trabalhar onde queremos. Mas como é possível forçar alguém que possui um CRM e portanto o direito de praticar sua profissão em qualquer lugar do País? Fácil, basta criar um CRM provisório, que só permite ao recém-formado clinicar no local designado. Cumprida a missão, liberamos o CRM definitivo. Mas isso não é uma forma de coerção? Não se preocupe, o trabalho cívico fará parte formal do treinamento, basta aumentar o curso em dois anos. Boa ideia, quem escreve a medida provisória?”

    No dia seguinte: “Um aluno com um CRM provisório é um médico de verdade? Pode tratar pacientes sem supervisão? Claro que sim, senão como ele vai trabalhar no local designado? Mas então ele não é um aluno, é um médico escravizado. Não, escravidão é inconstitucional, ele tem de ser também aluno, vai lá, escreve a MP, depois resolvemos esse detalhe. Sim, chefe, mas que tal incluirmos os médicos importados na MP? Basta dar a eles uma licença provisória para praticar a medicina no País, uma espécie de CRM provisório atrelado ao local de trabalho. Brilhante, vai, escreve a MP que o Diário Oficial fecha daqui a duas horas.”

    No terceiro dia eles descansaram. Haviam criado o meio médico, meio escravo. A pizza que esperam servir aos manifestantes. Se tudo der certo, agora vamos protestar na frente das Faculdades de Medicina e do CRM, os verdadeiros culpados pela crise na saúde pública.

    Publicidade

    Publicidade

    Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

    Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

    Semana Black Friday

    A melhor notícia da Black Friday

    BLACK
    FRIDAY

    MELHOR
    OFERTA

    Digital Completo

    Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

    Apenas 5,99/mês*

    ou
    BLACK
    FRIDAY
    Impressa + Digital
    Impressa + Digital

    Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (a partir de R$ 8,90 por revista)

    a partir de 35,60/mês

    ou

    *Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
    *Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

    PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
    Fechar

    Não vá embora sem ler essa matéria!
    Assista um anúncio e leia grátis
    CLIQUE AQUI.