Deonísio da Silva
“Pelo que fizeram se hão de condenar muitos; pelo que não fizeram, todos”, disse o Padre Antônio Vieira, cara a cara com as autoridades que ouviam o famoso Sermão da Primeira Dominga do Advento, pregado na Capela Real, em Lisboa, no ano de 1650, no qual pronunciou quinze vezes a palavra omissão.
Disse também: “Por culpa de uma omissão, o príncipe está cometendo maiores danos, maiores estragos, maiores destruições, que todos os malfeitores do mundo em muitos anos”.
A Universidade Estadual Paulista (UNESP), que tem cerca de 50.000 alunos e 3.000 professores, cujos câmpus estão espalhados por todo o Estado de São Paulo, tem usado textos de autores clássicos em seus vestibulares, entre os quais um excerto deste Sermão, utilizado no vestibular de 2016, sobre o qual fez três questões muito pertinentes e bem escritas, isto é, claras, concisas, objetivas e didáticas, destoantes de certos textos do Enem de 2018.
Na primeira, tomando por base o excerto transcrito, de mais ou menos 500 palavras ou 2.642 caracteres, os examinadores perguntaram qual foi o alvo principal da crítica feita por Vieira no conhecido Sermão.
Sim, se o aluno cursar um bom ensino médio, ele deverá conhecer alguns sermões referenciais do Padre Vieira, e o Sermão da Primeira Dominga do Advento, pregado em Lisboa, na Capela Real, em 1650, é um deles.
Para orientar os vestibulandos a interpretar o texto tomado como referência, foi-lhes perguntado qual tinha sido o alvo principal da crítica de Vieira. Foram apresentadas cinco alternativas, sendo apenas uma delas a correta: a) a falta de religiosidade dos governantes; b) a falta de escrúpulos dos religiosos; c) a preguiça da população; d) a negligência dos governantes; e) a luxúria dos religiosos.
Como se vê, é possível fazer com que o aluno leia, pense e responda corretamente, ainda que tenha lido apenas o trecho apresentado e desconheça o texto completo do célebre Sermão.
Para isso, precisa conhecer o significado das palavras empregadas pelo padre, isto é, o aluno precisa ter um vocabulário razoável. Será que no ensino médio lhe ensinaram vocabulário, sinônimos? Será que lhe ensinaram a consultar dicionários?
Se ele, por sorte, tiver lido por conta própria alguns rudimentos de origem das palavras, tira de letra a resposta correta, pois negligência quis dizer originalmente não escolher, de acordo com os étimos nec e leg. Este segundo étimo está também em legere, ler, que é colher ou escolher as palavras para entender o texto.
O aluno que acertou a reposta terá lido o texto e respondido que a resposta correta é a “d”. Pois as quatro restantes não aparecem no texto.
Na pergunta seguinte, ele deve responder qual das cinco construções transcritas contém um aparente paradoxo: a) “o mal é que perdem a si e perdem a todos”; (b) “os piores perdem-se pelo que deixam de fazer, que estes são os piores”; c) “desçamos a exemplos mais públicos”; d) “Oh que arriscado ofício é o dos príncipes e o dos ministros”; e) “A omissão é um pecado que se faz não fazendo”.
Quem acertou a resposta, marcou “e”, pois esta é a única que contém um aparente paradoxo.
O vestibular de 2017 da Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest) traz numa das questões um trecho de Iracema, de José de Alencar, seguido de excerto de estudo crítico de Augusto Meyer sobre o autor cearense ─ de atuação decisiva na formação do romance brasileiro, aliás ─ e busca descobrir se o aluno sabe fixar corretamente os parâmetros de interpretação do ensaísta, alicerçados no texto do ficcionista.
A resposta correta é a “c”, porque é a única a deixar bem claro que Iracema não é um romance histórico, uma vez que a narrativa baseia-se num mito. (Para uma aferição exata, ver Guia do Estudante, Vestibular + Enem 2018, Editora Abril, p. 135).
Outros vestibulares, como os da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do próprio Enem de anos anteriores a 2018 trouxeram questões baseadas em textos de Cruz e Souza, do Dicionário Houaiss, de Moacyr Scliar, de Clarice Lispector e até do Dicionário de Sentenças Latinas e Gregas, de Renzo Tosi.
Em resumo, há boas indicações de que podemos navegar por mares sempre dantes navegados, fazendo nos exames perguntas sobre os conteúdos pertinentes ao ensino médio, de olhos atentos a textos de qualidade e estáveis na língua, não a modismos que, justamente por estarem em moda, estão saindo de moda, uma vez que a marca principal da moda é ser efêmera.
Já a língua portuguesa é um sistema estável, tem a idade da universidade ─ quase um milênio ─ e é nossa principal herança cultural. Além do mais, há autores que levaram às fronteiras da expressão escrita suas expressões literárias e eles não podem ser ignorados como se a língua fosse apenas o que se fala. É também o que se fala, mas é também o que se escreve.
Alunos e professores não podem ignorar os programas, as ementas e as respectivas bibliografias. O livro, em formato impresso ou digital, continua a ser a referência solar do ensino.
Sem que o aluno leia, nem sequer um excelente professor obterá êxito no processo do ensino e da aprendizagem mútuos.
• O texto completo deste Sermão ─ há outros com o mesmo nome, mas a Unesp utilizou a versão pregada em 1650 na Capela Real, em Lisboa ─ pode ser lido aqui.
E o excerto completo transcrito no Vestibular da Unesp é este:
“Sabei, cristãos, sabei, príncipe, sabei, ministros, que se vos há de pedir estreita conta do que fizestes, mas muito mais estreita do que deixastes de fazer. Pelo que fizeram, se hão de condenar muitos; pelo que não fizeram, todos.
Desçamos a exemplos mais públicos. Por uma omissão, perde-se uma maré, por uma maré, perde-se uma viagem, por uma viagem, perde-se uma armada, por uma armada, perde-se um estado. Dai conta a Deus de uma índia, dai conta a Deus de um Brasil, por uma omissão. Por uma omissão, perde-se um aviso, por um aviso, perde-se uma ocasião, por uma ocasião, perde-se um negócio, por um negócio, perde-se um reino. Dai conta a Deus de tantas casas, dai conta a Deus de tantas vidas, dai conta a Deus de tantas fazendas, dai conta a Deus de tantas honras, por uma omissão. Oh! que arriscada salvação! Oh! que arriscado ofício é o dos príncipes e o dos ministros! Está o príncipe, está o ministro divertido, sem fazer má obra, sem dizer má palavra, sem ter mau nem bom pensamento, e talvez naquela mesma hora, por culpa de uma omissão, está cometendo maiores danos, maiores estragos, maiores destruições, que todos os malfeitores do mundo em muitos anos. O salteador na charneca com um tiro mata um homem; o príncipe e o ministro com uma omissão matam de um golpe uma monarquia. A omissão é o pecado que com mais facilidade se comete, e com mais dificuldade se conhece, e o que facilmente se comete e dificultosamente se conhece, raramente se emenda. A omissão é um pecado que se faz não fazendo (…)
Mas, por que se perdem tantos? Os menos maus perdem-se pelo que fazem, que estes são os menos maus; os piores perdem-se pelo que deixam de fazer, que esses são os piores: por omissões, por negligências, por descuidos, por desatenções, por divertimentos, por vagares, por dilações, por eternidades. Eis aqui um pecado de que não fazem escrúpulo os ministros, e um pecado por que se perdem muitos. Mas percam-se eles embora, já que assim o querem. O mal é que se perdem a si, e perdem a todos; mas de todos hão de dar conta a Deus. Uma das coisas de que se devem acusar e fazer grande escrúpulo os ministros, é dos pecados do tempo. Porque fizeram o mês que vem o que se havia de fazer o passado; porque fizeram amanhã o que se havia de fazer hoje; porque fizeram depois o que se havia de fazer agora; porque fizeram logo o que se havia de fazer já. Tão delicadas como isto hão de ser as consciências dos que governam em matérias de momentos. O ministro que não faz grande escrúpulo de momentos, não anda em bom estado: a fazenda pode restituir; a fama, ainda que mal também se restitui; o tempo não tem restituição alguma”.
*Deonísio da Silva
Diretor do Instituto da Palavra & Professor
Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
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