A saborosa subversão da nova safra de produtores de vinhos nacionais
Ótimas invenções ganham espaço até em regiões do país em que mudar velhas regras ainda soa como uma heresia

Se a essa altura você ainda não se convenceu do salto evolutivo e qualitativo do vinho brasileiro, corra, porque está prestes a ser atropelado por uma nova e virtuosa onda. Há uma geração de enólogos, todos com menos de 40 anos, que estão transformando o tradicional mercado com suas produções e modo de trabalhar. Chama atenção o fato de que boa parte dessa turma vem do sul do país, justamente uma das regiões em que ir de encontro a velhas receitas muitas vezes soa como heresia. Trata-se de uma saborosa e bem-vinda subversão, pois os rótulos assinados por eles merecem todos os aplausos. São ousados, divertidos, surpreendentes e, acima de tudo, claro, muito bons de beber.
Um dos expoentes dessa geração vêm da gaúcha Bento Gonçalves. São três amigos que estudaram juntos e resolveram adotar um estilo que chamaram de enologia criativa. Andrei Bellé, Jhonatan Marini e Guilherme Caio comandam a Garbo, vinícola que chama atenção por cortes (blends) inusitados. O Inquieto (R$ 160), por exemplo, mistura Merlot com Sauvignon Blanc. Foi uma ótima sacada, como pude comprovar na mais recente edição Wine South America (WSA), realizada entre os dias 6 e 8 de maio, em Bento Gonçalves (RS). No blend do Inquieto, a maciez da Merlot ganha frescor e mais acidez da Sauvignon Blanc. O resultado é um vinho extremamente gastronômico e fácil de beber.
Provei também da Garbo um clarete de Pinot Noir, chamado Cherry Bomb (R$ 122), vibrante e fresco, perfeito para ser tomado gelado, ideal para quem não abre mão de tinto nos dias quentes. A vinícola tem um total de vinte rótulos, todos produzidos em esquema de microlotes, que chegam a no máximo 4 000 garrafas de cada rótulo por safra. O desenho das etiquetas harmoniza com irreverência da proposta etílica: nada de brasões, letras em dourado ou castelos. No lugar disso, pode pintar a ilustração de um elefante quando é o caso de chamar atenção para a potência do vinho. Na Garbo esse trabalho também fica a cargo de jovens designers da região.
Recentemente, os rapazes, ou melhor, os guris, compraram seu primeiro vinhedo em Pinto Bandeira, cidade vizinha de Bento Gonçalves que recebeu a primeira Denominação de Origem para espumantes do Brasil. Enquanto a produção com uvas próprias não acontece, eles “alugam” vinhedos de produtores que consideram ter boas práticas e trabalham juntos pelo melhor resultado da colheita. “Desta forma garanto o valor que esse viticultor receberia pela venda das uvas, mas posso interferir no trabalho no sentido de usar menos química possível, por exemplo”, me contou Guilherme Caio. Como ainda não têm a estrutura de vinícola, dizem que produzem uma “enologia cigana”, usando a estrutura de outras casas da região, como uma espécie de coworking.
São uns dos poucos enólogos que falam abertamente sobre seus produtores de uvas na região e esse apreço por eles é sem dúvida inovador. “A comunidade enológica mais tradicional não nos enxerga com os melhores olhos, talvez porque não fazemos nada muito convencional, mas nossa base é a enologia clássica”, explicou Guilherme. As entidades podem até ter seus receios ou considerações sobre essa turma, mas o mercado os adora. O stand deles era um dos mais movimentados da Wine South America.
Em outra esquina movimentada da mesma feira estava a Foppa&Ambrosi, dos “guris” Lucas Foppa e Ricardo Ambrosi. A dupla que se conheceu na escola de enologia, no Instituto Federal de Bento Gonçalves, começou a fazer vinho no porão de casa. Hoje, eles têm suas garrafas em hotéis como Unique e Fasano, em São Paulo, além de rótulos com 91 pontos do critico americano James Suckling, a exemplo do Cultura Chardonnay 2023 (R$ 165). Os meninos têm uma filial da vinícola em Nappa Valley, nos Estados Unidos e, no ano passado, firmaram uma parceria com a uruguaia Braco Bosca, que recebeu o título de vinícola do ano em 2025 pelo Guia Descochados. “O que explica eles terem saído da produção de 300 garrafas para 120.000 em apenas cinco anos de operação sem dúvida é a qualidade do vinho, mas a maneira inovadora de trabalhar, sem ter medo de fazer parcerias e colaborações, o que fez toda diferença”, diz Fabiano Maciel, CEO da Interbev, empresa que tem ajudado a colocar essas vinícolas no mapa. Durante 20 anos, ele foi responsável pela exportação da Miolo e garante que o que falta a muitos produtores do Sul é uma “mentalidade de negócio”. “A Cave Geisse é maravilhosa, mas como eles há dezenas de produtores com qualidade impressionante por aqui, verdadeiras pérolas escondidas”, disse ele, referindo-se a uma das mais prestigiadas marcas de espumantes da região de Pinto Bandeira.

O cenário de pequenos e jovens produtores é tão vibrante que o governo do Rio Grande do Sul subsidiou via edital um quarteirão na entrada da WSA, onde 30 produtores de vinho, azeite e uísque puderam expor seus produtos no modelo rodízio, para que houvesse pelo menos um dia para cada um. Uma das vinícolas nesse espaço era a Terra Fiel, da enóloga Paula Schenato, que orgulhosamente apresentava entre outros vinhos seu TF Terroir Chardonnay. Ele recebeu o título de melhor do país em 2025, com 94 pontos e medalha de Duplo Ouro pelo júri da Grande Prova de Vinhos do Brasil, comandada pelo jornalista Marcello Copello. Esse especialista também estava por lá para fazer duas master classes com os vinhos premiados e para a cerimônia oficial de premiação da prova. “Quando comecei a ranquear os vinhos brasileiros eu pescava cinco vinhos legais, num mar de outros mais ou menos. Este ano, das 1007 amostras que se apresentaram na 15ª edição da prova, tivemos 120 vinícolas e 300 premiados, em 51 categorias. O que mostra que o nível subiu muito, que há mais diversidade de uvas e de estilos, em diversas partes do país, porque tivemos a participação de 10 estados”, contou Copello à coluna AL VINO.

Também foi lançada na WSA o Corte I (R$ 293), a primeira edição de uma parceria, até então nunca vista naquelas cercanias, comprovando uma mudança de mentalidade e anunciando a chegada de novos tempos. Três amigas, Fabiane Veadrigo (Famiglia Veadrigo), Graziela Boscato (Caetano Vicentino) e Janaína Massarotto (Marzarotto) que estão a frente de três vinícolas da região de Altos Montes, na gaúcha Flores da Cunha, uniram suas castas preferidas para o lançamento do primeiro produto que promete levar a linha Três Enólogas. O vinho foi produzido com Tannat, Touriga Nacional, Merlot, Cabernet Franc, Pinot Noir e Sangiovese. “Unimos nossos conhecimentos e experiências para criar algo inédito e que traz toda a complexidade da mulher”, disse Fabiana. Segundo as autoras, este primeiro vinho tem potencial de guarda.

Que a iniciativa das Três Enólogas seja tão longeva quanto essas parcerias que têm transformado e tornado ainda mais vibrante o mercado do vinho brasileiro!