Uma carta abre Laços, de Domenico Starnone (Editora Todavia, 144 págs., R$44,90): Vanda, imersa em desespero, quer saber quando Aldo voltará para casa. Acusações, suposições e uma explosão iminente, que as páginas seguintes não demoram a nos indicar que estavam, até então, enterradas no passado.
Casados há mais de cinco décadas, Vanda e Aldo voltam de um passeio e encontram seu lar revirado. Ao reorganizar seus papeis, Aldo é levado a confrontar novamente a lembrança de sua escapada, ocorrida décadas antes.
A história alimenta uma estranha conversa com Os Dias do Abandono, livro assinado com o pseudônimo Elena Ferrante, sobre a ira de uma jovem mulher abandonada pelo marido com dois filhos. E dá mais corda para a teoria de que a esposa de Starnone, Anita Raja, seria a real identidade da escritora best-seller.
Sendo a premissa verdadeira, as duas obras ganham contornos autobiográficos; a dúvida e a boataria se tornam fios adicionais para o leitor se enovelar. Laços chega às livrarias no final de agosto. Confira trecho da carta de Vanda:
“Primeiro capítulo
1.
Caso tenha esquecido, egrégio senhor, permita-me recordar: sou a sua mulher. Sei que antigamente isso lhe agradava e agora, de uma hora para outra, já começou a aborrecê-lo. Sei que faz de conta que não existo e que nunca existi, porque não quer fazer feio diante da gente culta que você frequenta. Sei que ter uma vida regrada, ter de voltar para casa na hora do jantar, dormir comigo e não com quem lhe dá na telha faz com que se sinta um cretino. Sei que você tem vergonha de dizer: vejam, me casei no dia 11 de outubro de 1962, aos vinte e dois anos; disse sim na frente do padre, numa igreja do bairro Stella, e o fiz só por amor, não porque precisasse me proteger; vejam, tenho minhas responsabilidades, e se vocês não entendem o que significa ter responsabilidades é porque são pessoas mesquinhas. Sei disso, sei perfeitamente. Mas, quer você queira, quer não, o dado concreto é este: eu sou sua mulher e você é meu marido, estamos casados há doze anos – doze anos em outubro – e temos dois filhos, Sandro, nascido em 1965, e Anna, nascida em 1969. Preciso mostrar os documentos para refrescar sua memória?
Chega, me desculpe, sou exagerada mesmo. Conheço você, sei que é uma boa pessoa. Mas, por favor, assim que ler esta carta, volte para casa. Ou, se ainda não se sentir à vontade, me escreva explicando o que está acontecendo. Vou tentar entender, prometo. Já está claro para mim que você precisa de mais liberdade, e é justo, eu e seus filhos vamos tentar sobrecarregá-lo o mínimo possível. Mas você precisa dizer tim-tim por tim-tim o que há entre você e essa garota. Já se passaram seis dias e você nem telefona, nem escreve, nem aparece. Sandro está perguntando por você, Anna não quer lavar o cabelo porque diz que só você sabe enxugá-lo direito. Não basta jurar que essa senhora ou senhorita não lhe interessa, que não vai mais encontrá-la, que ela não tem importância, que foi apenas por ocasião de uma crise que vinha crescendo há tempos. Me diga quantos anos ela tem, como se chama, se estuda, se trabalha, se não faz nada. Aposto que foi ela quem o beijou primeiro. Você não é capaz de tomar a iniciativa, sei bem, ou o puxam para dentro, ou você não se mexe. E agora está confuso, notei seu olhar quando me disse: fiquei com outra. Quer saber o que eu acho? Acho que você ainda não se deu conta do que me fez. Entende que é como se tivesse enfiado uma mão na minha garganta e puxado, puxado, puxado até arrancar o que eu tenho no peito?
Por muito tempo você disse disparates, com uma tranquilidade pedante, sobre os papéis em que nos aprisionamos ao casar – o marido, a esposa, a mãe, os filhos – e nos descreveu – a mim, a você, aos nossos filhos – como engrenagens de uma máquina desprovida de sentido, forçados a repetir para sempre os mesmos movimentos tediosos. E prosseguiu assim, citando de vez em quando algum livro para que eu me calasse.
2.
Lendo o que você escreve, parece que eu sou a carrasca e você, a vítima. Não suporto isso. Estou me empenhando o máximo possível, estou me submetendo a um esforço que você nem imagina, e a vítima é você? Por quê? Porque levantei um pouco a voz, porque
quebrei uma jarra de água? Você tem de admitir que eu tinha alguma razão. Você reaparece sem avisar depois de quase um mês de ausência. Parecia tranquilo, até afetuoso. Então pensei: ainda bem, ele voltou a si. Mas você, como quem não quer nada, me diz que a mesma pessoa que quatro semanas antes não lhe despertava nenhum interesse – bondade sua, você decidiu que já era hora de lhe dar um nome e a chamou de Lidia – agora é tão importante que você não consegue mais viver sem ela. Excetuando o momento em que você mencionou a existência dela, falou comigo como se se tratasse de um comunicado burocrático, diante do qual só me caberia dizer: perfeito, vá embora com essa Lidia, obrigada, farei de tudo para não incomodá-lo. E assim que tentei reagir você me impediu e passou a fazer discursos genéricos sobre a família: a família na história, a família no mundo, sua família de origem, a nossa. E eu devia ficar quietinha? Era isso que você esperava? Às vezes você é ridículo, pensa que basta misturar especulações genéricas e outras historietas suas para que tudo se encaixe. Mas estou cansada dos seus joguinhos. Você me contou pela milésima vez, mas com um tom patético que em geral não usa, como a péssima relação dos seus pais estragou sua infância. Recorreu a uma imagem dramática: falou que seu pai tinha enrolado sua mãe em arame farpado e que, toda vez que você via um nó de ferro pontiagudo entrando na carne dela, era um sofrimento. Depois você se concentrou na gente. Me explicou que, assim como seu pai fizera mal a todos vocês, do mesmo modo – já que aquele fantasma de homem infeliz, que lhe causou infelicidade, ainda o atormenta –, você temia fazer mal a Sandro, a Anna e principalmente a mim. Viu como não perdi nenhuma palavra? Por muito tempo você disse disparates, com uma tranquilidade pedante, sobre os papéis em que nos aprisionamos ao casar – o marido, a esposa, a mãe, os filhos – e nos descreveu – a mim, a você, aos nossos filhos – como engrenagens de uma máquina desprovida de sentido, forçados a repetir para sempre os mesmos movimentos tediosos. E prosseguiu assim, citando de vez em quando algum livro para que eu me calasse. No início pensei que me falava daquele modo porque lhe acontecera algo muito ruim e você não conseguia lembrar quem eu era, uma pessoa com sentimentos, pensamentos, voz própria, e não uma boneca do teatrinho de Pulcinella que você estava montando. Só muito tarde é que suspeitei que estivesse se esforçando para me ajudar. Queria que eu compreendesse que, ao destruir nossa vida em comum, na verdade você estava nos liberando, a mim e às crianças, e que deveríamos agradecer por essa sua generosidade. Oh, obrigada, quanta gentileza. E ainda se ofendeu porque o expulsei de casa?
Aldo, por favor, reflita. Temos de discutir a sério, preciso entender o que está acontecendo com você. Durante nossa longa convivência você sempre foi um homem afetuoso, tanto comigo quanto com as crianças. Você não se parece nem um pouco com seu pai, lhe garanto, e nunca notei essa coisa do arame farpado, das engrenagens e de outras baboseiras que você disse. Mas me dei conta – isso sim – de que nos últimos anos algo estava mudando entre nós, de que você olhava outras mulheres com interesse. Recordo muito bem aquela do acampamento, dois verões atrás. Você ficava deitado na sombra, lia por horas. Estava ocupado – dizia – e não dava bola nem para mim nem para as crianças: estudava sob os pinheiros ou deitado na areia, e escrevia.Mas, quando erguia os olhos, sempre olhava para ela. E ficava de boca entreaberta, como quando tem uma ideia confusa na cabeça e tenta lhe dar uma forma.
Não me faça perder a paciência, Aldo, tome cuidado. Se eu quiser, vou fazer você pagar.
Na época, disse a mim mesma que não havia nada de errado naquilo: a moça era bonita, não se pode mandar nos olhos, mais cedo ou mais tarde um olhar acaba escapando. Mas sofri muito, sobretudo quando você começou a se oferecer para lavar os pratos, coisa que nunca acontecia. Você disparava para as pias assim que ela ia para lá, e só voltava quando ela voltava. Acha que eu sou cega, que sou insensível, que não me dei conta? Dizia a mim mesma: calma, isso não significa nada. Porque me parecia inconcebível que você pudesse gostar de outra, estava convencida de que, se você havia se apaixonado por mim, continuaria assim para sempre. Achava que os sentimentos verdadeiros não mudam, especialmente quando se é casado. Pode acontecer, dizia a mim mesma, mas só com pessoas superficiais, e ele não é assim. Depois percebi que eram tempos de mudança, que até você teorizava sobre a necessidade de acabar com tudo, que talvez eu estivesse absorvida demais pelas tarefas domésticas, pela gestão do dinheiro, pelas demandas das crianças. Comecei a me olhar no espelho às escondidas. Como eu era, o que eu era? As duas gestações me transformaram muito pouco, eu era uma mulher e uma mãe eficiente. Mas é óbvio que não bastava continuar quase idêntica a quando nos conhecemos e nos apaixonamos, aliás, talvez o erro fosse esse, eu precisava me renovar, tinha de ser mais do que uma boa esposa e uma boa mãe. Assim, tentei parecer com aquela moça do acampamento, com as jovens que com certeza circulavam à sua volta em Roma, e me esforcei para estar mais presente na sua vida fora de casa. Aos poucos começou uma fase diferente, e você percebeu, espero. Ou não? Será que notou, mas não serviu de nada? E por quê? Não fiz o suficiente? Fiquei presa no meio do caminho, não consegui me adequar às outras e continuei sendo do mesmo jeito que era? Ou será que exagerei? Fiquei jovial demais e minha mudança o perturbou, fez que sentisse vergonha de mim, não me reconhecesse mais?
Vamos conversar, não me deixe no escuro. Preciso saber sobre essa Lidia. Ela tem uma casa, você dorme lá? Ela tem o que você procurava e eu não tenho mais ou nunca tive? Você escapuliu evitando de todas as maneiras me falar com clareza. Onde você está? O endereço que me deixou é de Roma, o número de telefone também; mas eu escrevo e você não responde, ligo e ninguém atende. O que eu faço para encontrá-lo: telefono a algum amigo, passo na faculdade? Vou ter de gritar na frente dos seus colegas e estudantes, vou ter de dizer que você é um irresponsável?
Tenho de pagar a conta de gás e luz. Tenho de pagar o aluguel. E as duas crianças. Volte logo. Eles têm o direito de contar com pais que cuidem deles dia e noite, um pai e uma mãe com quem possam tomar o café da manhã, que os acompanhem à escola e depois os busquem na saída. Têm o direito de ter uma família, uma família com uma casa onde todos almoçam juntos e se brinca e depois se vê um pouco de tevê e depois se dá boa-noite. Diga boa noite ao papai, Sandro, e você também, Anna, digam boa noite ao papai sem choramingar por favor. Historinha esta noite não, já está tarde; se quiserem historinha, vão logo escovar os dentes, papai conta, mas só quinze minutos; depois vamos dormir, porque senão chegamos tarde à escola, e o pai de vocês também pega o trem cedo, se chegar atrasado ao trabalho os outros reclamam. E as crianças – não lembra mais? – iam correndo escovar os dentes e depois lhe pediam que contasse a historinha, todas as noites, como sempre desde que as tivemos, como deve ser até que cresçam, até que saiam de casa e a gente fique velho. Mas talvez não lhe interesse mais envelhecer comigo, nem lhe interesse mais ver seus filhos crescerem. É isso? É isso mesmo?
Estou com medo. A casa é isolada, você sabe como Nápoles é, este lugar é terrível. De noite ouço barulhos e risadas, não consigo dormir, estou exausta. E se entrar um ladrão pela janela? Se nos roubarem a televisão, o toca-discos? Se alguém que não gosta de você resolve se vingar e mata a gente durante o sono? Será possível que você não entende o peso que me deixou nas costas? Esqueceu que eu não tenho um trabalho, que não sei como tocar o barco? Não me faça perder a paciência, Aldo, tome cuidado. Se eu quiser, vou fazer você pagar.”