Se você está minimamente conectado às redes sociais já deve ter ouvido ou visto algo – mesmo que de passagem pela timeline – sobre os dois documentários acerca de um festival chamado Fyre. Um, mais popular, da Netflix. Outro, da Hulu.
Num resumo, trata-se de um retrato de um fiasco: um festival de música que reuniria pessoas “padrão blogueiros do Instagram” numa ilha paradisíaca que foi de Pablo Escobar (e cheia de porcos nadadores) para ouvir música pop (na maioria dos casos, de gosto duvidável). No fim, tratava-se de um golpe que fazia milhares de pessoas pagarem milhares de dólares (em alguns casos, acima de 200 mil) por um festival que foi um desastre. Após muitas presepadas – e, descobriu-se, atos de pura enganação –, a tal balada na real foi feita em outra ilha, sem a mínima estrutura; as atrações musicais cancelaram presença; e a clientela teve de se aglomerar em tendas daquelas improvisadas durante desastres naturais, sem água potável e comida para todos. Na grande maioria dos casos, nem conseguiram o dinheiro de volta.
Há muito a se falar da qualidade – ou melhor, da falta de – dos documentários. O da Netflix falha ao acusar apenas um nome, o do organizador do evento, Billy McFarland (agora preso), da fraude toda. Não por acaso, o filme teve produção da agência de marketing (a FuckJerry, depois renomeada de Jerry Media) que trabalhou para divulgar a miragem nas redes sociais. No fim, virou um ato de propaganda para livrar a cara da Jerry Media – que sabia bem no que se metia e, mesmo assim, realizou a publicidade enganosa – e de outros envolvidos, para apontar o dedo unicamente ao pilantra McFarland. Por outro lado, a versão da Hulu é mais neutra, destaca todos os culpados (incluindo a agência de marketing)… mas pagou para McFarland conceder uma entrevista e o documentário foi finalizado às pressas, depois que se soube que a Netflix elaborava um concorrente.
Agora, independentemente da qualidade de ambas as produções, o que se leva delas? Uma das lições é que as redes sociais estão se transformando em armas de ilusão, capazes de fazer pessoas gastarem todas as suas economias com uma miragem ou votar em políticos em impulso guiado – ao menos em parte – por alucinações vendidas via Twitter.
No caso do festival Fyre, a semente da tramoia começou ao se alimentar um dos sentimentos mais usuais na internet: a inveja. Em um estudo recente, abordado nessa reportagem de VEJA (confira no link) assinada por mim, constatou-se algo óbvio: a emoção mais expressa pelas pessoas no Facebook é a inveja. Invejam-se as fotos de amigos em viagens; retratos de #TBT; famílias felizes; conquistas profissionais.
Não ajuda o fato de que a grande maioria dos usuários desses sites e apps só exibem em seus perfis o lado bom da vida. Por exemplo, se em uma viagem à praia deu tudo errado, passou-se mal com uma comida que se ingeriu, brigou-se com familiares etc., qual imagem sairá no Instagram? A da pose de ioga em frente ao mar paradisíaco.
McFarland e a FuckJerry foram ardilosos ao aproveitar a inveja dos outros. Montaram então uma cena. Viajaram, junto com o rapper Ja Rule (que tem muita culpa nessa história) e uma penca de top models, para a ilha do Pablo Escobar. Lá fizeram vídeos e fotos em lanchas, jatinhos, helicópteros, em volta da fogueira. Armaram um oásis no meio do deserto do Instagram. E com especial ajuda das modelos e de outros influenciadores digitais que, pagos para tal, compartilharam a ilusão em seus próprios perfis.
Sendo assim, quando um rapaz ou uma garota entrava em seu Instagram, logo se deparava com um famoso exibindo as maravilhosas fotos e os vídeos de belas moças e moços no Caribe. A inveja batia e se queria estar lá. A sacada é que se poderia estar lá. Por alguns milhares de dólares.
Bastaria então comprar o ingresso (até com opções caríssimas que dariam direito a iate, jet ski e outros luxos) para poder clicar as próprias fotos na praia paradisíaca, acompanhado de modelos e porcos nadadores. Ou seja, o que se vendia era um “pare de ter inveja das top models curtindo aqui; compre seu ticket para causar inveja nos amiguinhos no Instagram”.
A ilusão assim foi vendida. Os ingressos se esgotaram e quem comprou parece não ter se importado que não havia histórico de sucesso dos organizadores do evento. Também não pesquisaram para ver que na tal ilha de Pablo Escobar nem cabia tanta gente, muito menos uma rave como a proposta – e nem deram bola quando uns raros começaram a aparecer pelo Facebook com tal denúncia.
O Fyre assim traduziu outra característica instigante das redes sociais. Nelas, a maioria do público acredita cegamente no que se vê e no que se lê. Seja a crença de que aquela amiga realmente está em felicidade plena na foto que tirou em um hotel cinco estrelas no Rio de Janeiro – sem se importar que talvez ela só tenha alugado o quarto por um dia para passar lá 24 horas fazendo o ensaio de causar inveja no Instagram (muitos blogueiros e blogueiras adotam a tática). Ou a certeza de que uma fake news acerca de determinado político seria verdade – acende aí a agora tão falada teoria do viés de confirmação. Ou no sucesso de um festival sobre o qual nada se sabe; mas do qual se viu muitas fotos, prometendo levas de felicidade, no Instagram.
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Os documentários sobre o Fyre são fracos, sim. Porém, vislumbra-se neles um retrato do século XXI. Um no qual muitos incautos caem em armadilhas das redes sociais; enquanto outros, “espertinhos”, aproveitam-se para armar essas armadilhas para suas presas.
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