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Por Filipe Vilicic
Crônicas do mundo tecnológico e ultraconectado de hoje. Por Filipe Vilicic, autor de 'O Clube dos Youtubers' e de 'O Clique de 1 Bilhão de Dólares'.
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O Jesus gay do Porta dos Fundos condiz com o ideal da criação da internet

A rede foi inventada por cientistas para promover o progresso, a liberdade, a criatividade. Porém, tem sido tomada por fanáticos inquisidores e terroristas

Por Filipe Vilicic Atualizado em 28 dez 2019, 09h58 - Publicado em 26 dez 2019, 14h57

A internet tal qual conhecemos surgiu há 30 anos, em 12 de março de 1989. Foi quando o físico inglês Tim Berners-Lee desenhou um sistema de troca de informações em rede que se tornou o www, ou World Wide Web. Qual era sua intenção ao criar essa tecnologia? Nas palavras dele: “impulsionar a igualdade, oportunidades e a criatividade”. Nos últimos três anos, Berners-Lee tem publicado cartas públicas no dia do aniversário de sua invenção, mas em todas, contudo, se demonstra preocupado. O cientista sempre reafirma que sua intenção com o www foi fornecer uma ferramenta ao progresso, tanto tecnológico quanto social e cultural. Só que, em suas palavras, a rede tem sido tomada por “aqueles que espalham ódio”, levando ao “tom de indignação e polarização que torna baixa a qualidade dos discursos online”. Um resumo das impressões passadas por Berners-Lee em suas cartas e entrevistas, como as concedidas a VEJA em tempos recentes: o avanço que objetivava alimentar progressistas acabou por ser tomado por gente oposta, composta por reacionários, extremistas, populistas, saudosistas do período inquisitório da Idade Média, terroristas.

Quem chegou até este texto deve estar por dentro do caso do especial de Natal da Netflix feito pelo Porta dos Fundoscujos planos, incluindo o episódio lançado no streaming, foram antecipados por este colunista –, atacados por terem imaginado um “Jesus gay”. O Porta dos Fundos, assim como seus integrantes, é fruto exatamente da proposta seminal da internet. Como relato no livro O Clube dos Youtubers, o canal surgiu, em 2012, como resposta à resistência de meios tradicionais, em especial a TV, de então apostar em uma comédia diversa, ousada, que “passe a mão na bunda do guarda”, em vez de cuspir em quem está embaixo. Tornou-se um sucesso estrondoso justamente por captar o DNA do mundo online, aquele que foi inventado para incentivar o progresso, a liberdade, a racionalidade, o iluminismo… tudo traduzido pelo Porta em boa comédia.

Todavia, por uma série de razões, a internet tem sido tomada por fanáticos, bem daqueles tipos que parecem sentir excitação em cuspir em quem está embaixo – alguns dos quais até sem notar quando eles próprios pertencem a “quem está embaixo”. Extremistas que, muitas vezes em nome de textos sagrados que nunca leram, enraivecidos por vídeos que nem viram, inflam o ódio, o “tom de indignação e polarização que torna baixa a qualidade dos discursos online”. Assim servem de base para o incentivo de atos como o ataque terrorista à sede do Porta dos Fundos.

A “indignação e polarização” da vez foi gerada por um discurso não só de ódio, como hipócrita. Exemplificado assim em tuíte de Eduardo Bolsonaro, o número 03 feito pelo presidente:  “A Netflix acaba de lançar um “Especial de Natal” onde Jesus Cristo (Gregório Duvivier) é gay e tem relações com Fábio Porchat, além de se recusar a pregar a palavra de Deus. Somos a favor da liberdade de expressão, mas vale a pena atacar a fé de 86% da população? Fica a reflexão”.

Por que bem exemplifica? Primeiro, pelo “hipócrita” da coisa.

Sim, já li a Bíblia. Admiro imensamente a história de Jesus, um revolucionário que se posicionou contra os reacionários de seu tempo, que espalhavam o ódio contra minorias, a exemplo de prostitutas, leprosos e membros de religiões não-oficiais. Um profeta que, no caso do ataque ao Porta, poderia dizer: “Quem de vocês não tiver pecado, atire o primeiro molotov”. Em uma versão bíblica, ninguém atiraria. No mundo real, sobram os cegos fanáticos, cheios de pecados com os quais eles próprios não sabem lidar. Evidentemente, isso se Jesus se quer se pronunciasse sobre o episódio do Porta, visto que o mais provável é que, sendo a alma elevada que foi, se divertisse e gargalhasse com as interpretações de Gregório e Porchat.

O que acho também assustador, mesmo que tão esperado daquele povo que começou a tomar as redes sociais de assalto, é o quanto se indignaram com o esforço criativo de imaginar Jesus como gay. Explico-me: em nenhum momento Jesus, este próprio, julgou a homossexualidade como pecado (é tema que não devia despertar assunto na mesa da Última Ceia). Porém, outros pecados são apontados pela Bíblia, como: soberba, mentira, violência contra inocentes, o falso testemunho, o ato de plantar intrigas e fofocar para instigar conflitos e buscar vantagens para si.

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O, digamos assim, curioso: no brilhante roteiro do especial de Natal do mesmo Porta dos Fundos, só que em 2018, no episódio que consagrou o grupo com a vitória no Emmy neste ano (e, a meu ver, melhor lapidado, original e de fazer doer a barriga de tanto gargalhar, em comparação com a polêmica sequência de 2019), Jesus apresentou todos esses comportamentos pecaminosos e viciosos, ao se embebedar, arranjar briga em um bar, incentivar adultério, pregar uma peça em Judas, com base em uma série de mentiras. Os fanáticos das redes, além dos terroristas dos coquetéis molotov, se revoltaram? Não. O que os incomoda é que Jesus seja apresentado como gay – aliás, como saber se seria hétero ou homo, se pela tradição religiosa ele não teria se casado (apesar de a História apontar para outra versão)?

Parece-me que o que incomoda o povo que dominou Twitter, YouTube e afins não são os pecados. Afinal, talvez essa galera extremista também veja no espelho práticas similares, imorais e antiéticas, como a de mentir, passar a perna nos outros e cometer bullying como forma de abrir portas para subir na vida (ou tirar sarro de excluídos e marginalizados). Para os fanáticos, o que importou foi que Jesus seria gay, talvez por isso sim mexer com os colhões dessa gente escondida no armário de suas próprias tentações. Quanta hipocrisia, para dizer o mínimo.

Todavia, ainda tem o pior: o ódio. Em nome de um indivíduo abençoado, em tantos sentidos de tal palavra, progressista de sua era, inovador e liberal, a turba tuiteira promove a violência contra um grupo de comediantes que é… progressista de sua era, inovador e liberal. Extremistas assim favorecem um pecado capital (aí, sim, bem bíblico) cuja ignição é a raiva, e passam a ser evidentes responsáveis pelas consequências reais de tal comportamento, a exemplo do ataque à sede do Porta.

Como a animosidade online chegou a tal ponto? Como a internet que originou as redes sociais, o YouTube, a Netflix, passou a ser usada como campo fértil dos obscurantistas terraplanistas que caçam quem estes julgam como diferentes do padrão família comercial de margarina? Aí a culpa se volta aos algoritmos.

Às mídias sociais, em especial. A como o Twitter, o Facebook, o YouTube e afins foram desenhadas para funcionar à base de curtidas e compartilhamentos. No início, valia tudo para capturar o tempo (e a vida) dos usuários. Qual é a forma mais rápida de instigar as pessoas? Cutucando sentimentos extremos, de ódio e raiva, levando a uma indignação sem raiz coerente. Para a sociedade, as consequências são terríveis, como já se tem presenciado. Para a máquina, entretanto, pouco importa: algoritmos só querem saber do chamado “engajamento”, sem se ater às problemáticas dos atalhos recorridos para se chegar lá.

Com essa lógica primária, as redes transformaram a internet em uma “arma de grande escala”, como bem definiu Tim Berners-Lee em uma de suas cartas públicas. A solução para o caos social, cultural e político que se formou, levando a efeitos trágicos (e que podem piorar), também foi proposta pelo inventor inglês: “as empresas precisam se esforçar mais para garantir que a obsessão com o lucro em curto prazo não ocorra às custas da destruição de direitos humanos, da democracia, da ciência e da segurança pública”.

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Nos últimos três anos, após uma somatória de escândalos, as big techs, como Facebook e Google, têm se esforçado mais. Começaram a redesenhar algoritmos, por exemplo, para tentar privilegiar menos a ambição de viciar o público em sites e apps, sem se importar com como fazem isso. Testam-se e germinam-se métodos de dar menos vitrines aos reacionários, extremistas, populistas, inquisidores e terroristas. Mesmo assim, ainda não tem sido o suficiente, e se está longe disso.

Por isso mesmo Berners-Lee, o responsável por tirar as tecnologias que alicerçam a internet das mãos de militares e grupos de elite para abri-la a todos, assim como outros cientistas envolvidos com a criação do universo virtual, tem se posicionado a favor de uma carta de direitos universais que busque garantir que a tecnologia mais impactante dos últimos 30 anos não caia na mão do pior que há na humanidade. Que seja usada para o progresso e para o bem comunitário, não para a destruição e o resgate de eras obscuras. Um dos pressupostos que estaria no cerne dessa carta seria o impedimento do uso de algoritmos para viciar e instigar emoções radicalizadas em indivíduos, em busca do lucro rápido.

“Se falharmos em construir uma web melhor agora, então não será a web que terá falhado conosco. Nós teremos falhado com a web”, já concluiu o visionário Berners-Lee. Será que ainda há tempo para não falharmos com a web?

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